Escrito por: CNTE

ARTIGO - Mulheres gamers e a jornada para criar o seu próprio espaço

À primeira vista, o mundo gamer parece ser pouco ocupado por mulheres. Elas são apenas 17% do mercado produtor de games, de acordo com o II Censo da Indústria Brasileira de Jogos Digitais (2018). No entanto, são também 51,5% do público consumidor, segundo a Pesquisa Game Brasil (2021). Fica a sensação de que mulheres podem até orbitar neste espaço, mas nunca protagonizar essa história.

Assim como em outros setores do mundo do entretenimento, bem como em diversas outras áreas, papéis sociais de gênero forçam a inclusão ou exclusão de mulheres em determinados cenários. Mas esses cenários “não destinados” às mulheres são ocupados, mesmo que com a resistência daqueles que se consideram seus naturais e verdadeiros ocupantes.

Segundo Butler (2003), as questões sobre as identidades de gênero avançam para além de entender se são decorrentes de sua origem, a partir do sexo biológico, ou de suas causas, a partir de construções sociais. Para a autora, a definição do gênero é pré-discursiva, efeito de políticas de instituições, práticas e discursos que são, em sua origem, múltiplos e difusos.

Dentro dessa estrutura, a construção do sujeito feminino é organizada segundo um sistema de dominação, onde o masculino é considerado o padrão. Ao se referir ao gamer, por exemplo, logo vem à mente todo um imaginário coletivo sobre meninos e homens que jogam videogame. Tanto é verdade que ainda parece necessário inserir a palavra “mulher” antes da palavra “gamer”, diferenciando o gênero.

Apesar disso, elas estão aí. Se hoje há mudanças palpáveis é porque mulheres têm atuado para subverter os estereótipos que, ao longo dos anos, contribuíram para definir que espaços elas podem ou não ocupar. Antes, a indústria de games se dedicava a construir uma identidade feminina que atraísse um público majoritariamente constituído por homens; hoje, busca reformular essa identidade a fim de acompanhar as mudanças de um público consumidor cada vez mais feminino.

Em 2013, já era possível vislumbrar um progresso. Fortim e Monteiro (2013, p.249) afirmaram que as personagens femininas dos games possuíam novas atribuições que “retratam uma imagem feminina forte e independente, em consonância com as conquistas da mulher na sociedade ao longo do tempo e podem ser indicativos do reconhecimento da parcela feminina consumidora de videogames”.

Para fazer coro a essa tendência, Silva (2019) traz a evolução da personagem Lara Croft, da franquia Tomb Raider, ao longo de mais de duas décadas de existência. Apesar de ter sido extremamente sexualizada e objetificada, a mudança para uma protagonista mais complexa e menos sensual, com representação física mais condizente com a realidade, é um marco. Da mesma forma, outros games trouxeram a possibilidade da construção de protagonistas femininas que fujam de diversos estereótipos, como Aloy, de Horizon, ou Ellie e Abby, da franquia The Last of Us.

Neste contexto, onde mulheres são vistas como outsiders, reflexo de uma exclusão “natural”, também nasce um desejo de validar a sua existência e o seu espaço. Um caminho é a organização em prol de um cenário mais inclusivo e menos tóxico, a partir de diversas estratégias para lidar com essa resistência masculina, tão arraigada.

Há grupos expressivos que fomentam mais inclusão por meio da capacitação de desenvolvedoras de games, jogadoras profissionais de e-sports e também de streamers. Mas elas vão além. A Women Up Games, por exemplo, trouxe a campanha #MyGameMyName para o Brasil, em 2018, e convidava a comunidade gamer a refletir sobre o assédio e a violência sofrida por meninas e mulheres nesse nicho (SILVA, 2021).

Outro exemplo apontado por Silva é a Sakuras Esports, uma organização muito engajada na capacitação daquelas que têm o sonho de trabalhar com games, mas que também promove a formação de pensamento crítico a partir da produção de conteúdo sobre a história das mulheres gamers ou casos de violência que tomam grande repercussão neste nicho – e por vezes fora dele.

A organização de campeonatos femininos também é um ponto forte nesse processo de emancipação. É um recado para o cenário que, durante muito tempo, nunca pensou na possibilidade de meninas e mulheres desejarem competir profissionalmente. Em 2020, por exemplo, foi anunciada a criação de uma liga-feminina de Counter Strike: Global Offensive, a CS:GO Grrrls League. Para além do ineditismo, chama a atenção o valor da premiação, que totaliza R$200 mil – é a maior do país e a quarta do mundo .

Além de fazer história jogando profissionalmente, mulheres também ocupam outras posições em campeonatos: hoje, elas são hostess, narradoras e comentaristas. No jogo Valorant, um dos mais aclamados do momento, existe a iniciativa Game Changers , que visa criar novas oportunidades e promover um espaço competitivo mais inclusivo.

Para além destes grandes eventos patrocinados por desenvolvedoras de games já consolidados, ou de grandes empresas envolvidas no mercado, esse movimento para mudar o cenário não existiria se não fossem elas, as gamers. A união em prol de um lugar seguro para a diversidade é a principal engrenagem nessa estrutura que está, cada vez mais, acolhendo mulheres e também outras minorias históricas.

Não que elas não estivessem aí, jogando, mas agora podem dizer que são gamers, que existem, que jogam e produzem jogos. Que falam com propriedade sobre o assunto, não apenas sobre as violências que sofrem. Mas, dessa vez, sem medo do assédio e da represália por ousar fazer parte de um mundo que era destinado apenas para meninos e homens. Hoje, mais do que nunca, elas podem ser o que são: gamers.

Karin Cristina da Silva
Relações Públicas, mestra em Comunicação e agora doutoranda pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisa games e o ativismo de mulheres gamers nas redes sociais digitais. Também é colunista de games e cultura pop no site Delirium Nerd.

Fontes:
BUTLER, J. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
FORTIM, I.; MONTEIRO, L. F. Representações da figura feminina nos Videogames: A visão das jogadoras. In: XII Simpósio Brasileiro de Jogos e Entretenimento Digital (SBGames), 2013, São Paulo. SBC ? Proceedings of SBGames 2013, p. 246- 249. Disponível em: <http://www.sbgames.org/sbgames2013/proceedings/cultura/Culture-2_Short.pdf>.
PESQUISA Game Brasil 2021. Disponível em: <https://www.pesquisagamebrasil.com.br/>.
SAKUDA, L. O.; FORTIM, I. (Orgs.). II Censo da Indústria Brasileira de Jogos Digitais. Ministério da Cultura: Brasília, 2018.
SILVA, K. C.. Lara Croft e a evolução da representação feminina: dos jogos eletrônicos ao cinema. In: 8° Seminário Nacional Cinema em Perspectiva, 2019, Curitiba. Anais de artigos completos do 8º Seminário Nacional Cinema em Perspectiva e XII Semana Acadêmica de Cinema. Curitiba, 2019. p. 599-611.
SILVA, K. C. Gamer, substantivo feminino: as expressões do net-ativismo de mulheres gamers em redes sociais digitais. Dissertação (Mestrado em Comunicação). 132f. Universidade Federal do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Curitiba, PR, 2021. Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Eduardo Botelho Francisco.

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