Escrito por: CNTE
Samyra Crespo
Historiadora e pesquisadora sênior do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MCT). Foi presidente do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (2013-2016) e coordenou a
Rede Brasileira de Mulheres pela Sustentabilidade de 2009 a 2012.
Podemos afirmar com segurança que a Eco-92 (ou Rio- 92) produziu o encontro oportuno e multiplicador entre o movimento feminista e o movimento de mulheres ativistas do ambientalista global. É importante enfatizar que, antes da Conferência do Rio (ou da Eco-92, como foi apelidada), não era corrente no Brasil o uso do termo ambientalista”, e sim “ecológico’. Falava--se em movimento ecológico, um movimento crítico, alternativo e opositor ao que entendemos como modelo industrial-capitalista de desenvolvimento.
Em 1992, cerca de 30 mil mulheres se reuniram no Rio de Janeiro no chamado Fórum paralelo da Eco-92, e ali formularam uma ambiciosa agenda de luta das mulheres por um planeta mais sustentável. Foi o maior evento público de mulheres envolvidas com os temas ambientais até então: o Planeta Fêmea, que teve lugar no Aterro do Flamengo, também o maior evento da sociedade civil organizada em nosso país. Até aquele momento, as conferências da ONU eram estritamente governamentais, não incluíam a presença da sociedade civil organizada.
O Movimento de Mulheres, tanto o global como o nacional, compareceu em peso nesse evento e não desperdiçou a oportunidade de apresentar as suas reivindicações. Em vez de afirmar os princípios ideológicos das ativistas essencialistas, as lideranças entenderam a oportunidade política de se contrapor à tese do “population bomb” (baseada em estudo disseminado por seu autor, Paul Erlich) que afirmava ser necessário políticas públicas de controle de nascimentos para evitar a explosão populacional. A explosão populacional significaria maior pressão sobre os recursos naturais e o possível esgotamento deles.
As lideranças então articularam um poderoso discurso em torno dos “direitos reprodutivos” das mulheres (um dos principais focos da futura Conferência de Beijing em 1995), e denunciaram a esterilização da população pobre, justamente a que menos consome por exemplo, energia e outros serviços ecológicos. O Planeta Fêmea levantou uma vigorosa pauta em torno das diferenças entre Norte e Sul (países ricos e em desenvolvimento), bem como a necessidade de se combater o processo de “feminização da pobreza”, assegurando serviços básicos como água potável e alimentos saudáveis às famílias. Havia a poluição dos pobres e a poluição dos ricos. Qual era a pior?
Um mútuo benefício ocorreu, portanto, entre o feminismo, movimento maior e o ecofeminismo, vertente minoritária do movimento ecológico. Os ideários se misturaram e todas as conferências que se seguiram, no âmbito da ONU, direcionadas às mulheres o comprovam: houve uma ecologização da agenda do movimento feminista e houve
uma politização pragmática do movimento ecofeminista que passou a visar, além da “mudança de paradigma”, resultados concretos em suas ações. Nos dez anos seguintes à Conferência, pode-se seguir os rastros desse desdobramento por meio da Agenda 21 das Mulheres. Uma organização internacional catalisadora dessa orientação foi o WEDO, com sede nos EUA e a REDEH no Brasil.
Os documentos das Conferências Nacionais promovidas durante os governos progressistas de Lula e Dilma Roussef - por meio da Secretaria Especial das Mulheres (com status de ministério) são importantes fontes comprobatórias dessa saudável mescla. A Rio 92 consagrou além do termo “desenvolvimento sustentável” o de “stakeholders” (partes, agentes ou grupos interessados) e “grupos vulneráveis”, destacando neste último as crianças, mulheres, idosos e indígenas. Também recomendou fortemente que os processos de decisão fossem participativos. O que significou politicamente a inclusão de grupos sociais até então excluídos dos processos de tomada de decisão na vida pública.
Esses modelos participativos de gestão, assim como a criação de centenas de conselhos por todo o Brasil, foi um extraordinário fermento à inclusão feminina na vida pública brasileira. Em resumo, a Rio 92, entre outros benefícios, fortaleceu a democracia, e nesta configuração assegurou a participação das mulheres nos conselhos, comissões e demais instrumentos da chamada “gestão participativa” que foi enfaticamente incentivada. Pode-se ter a falsa impressão de que a vertente ecofeminista perdeu espaço, mas sua presença se fez sentir na educação ambiental e em milhares de iniciativas no caldeirão de tendências derivadas do “socioambientalismo brasileiro”, movimentos autônomos, sustentados por organizações da sociedade, igrejas e outras instituições que agregam conteúdos críticos ou alternativos ao mainstream da política ambiental institucional.
Nesta construção, deve-se também levar em conta o impacto dos programas de fomento por parte de organismos bi ou multilaterais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o Banco Mundial, ou ainda agências como PNUMA (Programa da ONU para o Meio Ambiente), e da agência que veio a se chamar ONU-Mulheres.
As agências de fomento engajaram-se fortemente na agenda de empoderamento das mulheres a partir da sua independência econômica, e então funcionaram como um verdadeiro celeiro de lideranças femininas locais. O ecofeminismo de raiz, mais fundamentalista, perdeu força sem desparecer. Estabeleceu uma pacífica convivência com as demais tendências e aflora aqui e ali. Note-se que, entre os documentos gerados pela Conferência da Rio, está a Carta da Terra, que tem entre seus redatores o ex-frei franciscano e filósofo Leonardo Boff. O tamanho colossal do esforço feito por esta geração, nos últimos 30 anos, construiu um invejável arcabouço político, técnico-científico
e empresarial, com resultados subestimados. A partir de 2018 esse gigantesco esforço foi abalado com a eleição de governos (federal, estadual e municipal) que se mostraram indiferentes ou hostis à agenda da sustentabilidade ambiental. E mais, contrários aos pilares da gestão participativa.
O futuro indica necessidade de reconstrução, de resgate de políticas e de articulações que possam tornar novamente pulsante a vida democrática do País. Neste futuro estará um grande número de mulheres. Com um aprendizado e uma contribuição imprescindível que merece ser vista e valorizada.
>> Artigo de Samyra Crespo para a Revista Mátria 2023 - acesse a versão em PDF da publicação