Escrito por: CNTE

Diversidade - Representatividade em todos os sentidos

 Aumenta a procura por histórias em quadrinhos que retratam personagens LGBTQIA+ de forma acolhedora e mais diversificada

Conversamos com duas artistas que estão lançando publicações com personagens LGBTQIA+ que fogem dos clichês e vão conquistando o grande público. Ellie Irineu é uma quadrinista de Campo Grande (MS) e atualmente organiza a coletânea "Histórias Quentinhas Sobre Sair do Armário". Luiza de Souza - conhecida como Ilustralu - é de Currais Novos (RN) e atualmente mora em Natal. Ela lançou a webcomic "Arlindo" nas redes sociais digitais, onde conquistou apoio de fãs para produzir a versão impressa desta história em quadrinhos. Veja a seguir o que elas contam sobre suas obras.

Ellie Irineu
Instagram: @ellie.irineu

Mátria - Como surgiu a ideia de produzir essas "Histórias Quentinhas Sobre Sair do Armário"?
Ellie Irineu - Eu e as outras autoras do primeiro livro estávamos cansadas de ver histórias sobre pessoas LGBTQIA+ sempre contadas por pessoas cis hétero, sempre da
mesma maneira e com os mesmos problemas. Essas histórias são feitas para um público cis hétero, para satisfazer a visão deles de pessoas LGBTQIA+ como algo exótico
e incapaz de resolver seus próprios problemas. Queríamos criar algo para o público LGBTQIA+, feito por pessoas LGBTQIA+, onde esse público pudesse se identificar de
verdade com as histórias.

M - Quais são os principais estereótipos de personagens LGBTQIA+?
EI - A maior parte das histórias de personagens LGBTQIA+ na grande mídia caem dentro de estereótipos trágicos de uma maneira ou outra: repletas de culpa, com personagens que muitas vezes morrem no final, perdem pessoas queridas, e passam a vida triste. Não que histórias assim não existam na vida real, mas não existem na proporção em que são mostradas. É uma visão hétero e cis de um grupo que esses escritores querem sempre mostrar como coitados, indefesos, e doentes. Mesmo pessoas bem intencionadas caem nessas armadilhas narrativas, e daí vem a importância de histórias escritas por pessoas LGBTQIA+ que retratem sua vivência como um todo, mostrando não apenas as dificuldades mas também os outros momentos.

M - Quem são os leitores dessas histórias?
EI - A maior parte do público é LGBTQIA+ e isso é parte da proposta. Com tantas histórias feitas exclusivamente para um público hétero, eu senti que já era hora de fazer um
trabalho que fosse voltado para o público LGBTQIA+, onde essas pessoas que com tanta frequência são esquecidas fossem o alvo desde a criação do projeto até a divulgação. Boa parte do público está na faixa dos 20-30 anos, mas o livro também chega na mão de pessoas mais novas e mais velhas. Certa vez uma adolescente comprou um exemplar e disse
que ia precisar esconder dos pais, mas que não via a hora de ler. Por um lado é uma situação bem triste, mas ao mesmo tempo fiquei muito feliz de saber que mesmo assim ela
estava conseguindo consumir esse tipo de conteúdo e se sentindo representada por ele. Quando eu tinha a idade dela, eu não tinha essa opção.

M - Como você avalia a representatividade de personagens LGBTQIA+ nos quadrinhos: é um debate mais recente, ele vem crescendo, é uma coisa muito de nicho ou é algo que também a sociedade em geral está mais aberta para olhar essas histórias com mais naturalidade?
EI - O público LGBTQIA+ sempre foi muito sedento por representatividade, e procurava representação em qualquer lugar onde houvesse um personagem vagamente LGBTQIA+.
Qualquer pessoa que consome quer representatividade. Mas alguns grupos (pessoas cis, hétero e brancas) sempre a tiveram e nunca nem perceberam. Porém hoje estamos em uma situação onde essas pessoas LGBTQIA+ que cresceram buscando representatividade em histórias que não eram suficientes agora são também os novos criadores de conteúdo, e temos toda essa geração de pessoas fazendo um esforço enorme para compensar essa falta. Ainda tem muito caminho a ser andado, mas cada vez mais vejo histórias sobre pessoas LGBTQIA+ fazendo sucesso, e personagens LGBT dentro de outras mídias já famosas.

M - Na sua opinião qual o papel das escolas para reduzir ou até eliminar os preconceitos de orientação sexual ou de gênero?
EI - Eu acho extremamente necessário que se converse desde cedo sobre essas questões, principalmente com quem não é LGBTQIA+. Enquanto pessoas cis e hétero não forem ensinadas a respeitarem pessoas LGBTQIA+, elas vão continuar agredindo e matando essas pessoas ao longo da vida. Acabar com o preconceito é problema das pessoas cis hétero:
afinal, são elas que o propagam. Parte da função da escola deveria ser de ensinar os alunos sobre diversidade, além de fazer um esforço real para incluir as pessoas que fogem
desse padrão cis hétero da sociedade. Para bem ou para mal, tudo começa na educação.

Luiza Souza - Instagram: @ilustralu

Revista Mátria - Como surgiu a ideia de produzir a webcomic Arlindo?
Luiza Souza - A ideia de Arlindo veio depois do resultado das eleições de 2018. Eu tinha começado a fazer algumas tirinhas, na intenção de mostrar como o discurso de ódio era
nocivo pras crianças que ouviam. Essas tirinhas se tornaram meio que um estudo de personagem para o que seria o Arlindo da webcomic, adolescente e com uma história que
precisava ir além do reflexo desse discurso de ódio, como bem disse o Emicida: "Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes". Arlindo veio como um primeiro passo para construir espelhos e conversas

M - E o caminho para a produção da HQ impressa?
LS - O convite para fazer a versão impressa da webcomic veio depois da minha participação na FLIPOP, evento de literatura pop organizado pela editora Seguinte. Com a pandemia, os eventos que eram sempre no sudeste foram pro online e eu (que moro em Natal) pude estar presente. O pessoal da editora conheceu Arlindo e a gente começou a pensar junto como seria o impresso.

M - Quem são os leitores do Arlindo?
LS - Acredito que os leitores de Arlindo vão desde pessoas como eu - que cresceram sem ter espelhos como esse pra se enxergar quando eram mais jovens, ao público mais
novo que se vê nesses personagens e pode construir uma relação mais positiva com a própria história. Arlindo puxa você pela mão pra mergulhar na história e olhar o mundo
com a perspectiva dele, gosto de pensar que não é necessário fazer parte da comunidade LGBTQIA+ pra se encantar com ele, ou com a mãe, a vó, a tia, ou os amigos dele.

M - Como você avalia a representatividade de personagens LGBTQIA+ nos quadrinhos?
LS - Com a internet houve uma horizontalização da produção de conteúdo em diversas mídias e com o quadrinho não foi diferente. A boa representatividade costumava estar
no quadrinho alternativo, independente, nas webcomics e estão aos poucos tomando seu lugar no mercado. Fun Home (Alison Bechdell) e Nimona (Noelle Stevenson) por
exemplo, se tornaram best-sellers no mundo todo e abriram portas não só para que outros quadrinhos com personagens e enredos LGBTQIA+ fossem traduzidos no Brasil, mas
também para que autores nacionais que fazem narrativas assim sejam publicados também. A gente ainda é carente dessas histórias, das histórias boas, que nos percebem como
pessoas inteiras e não só uma parte.

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