Escrito por: CNTE
Desde 2013 a plataforma Transempregos vem mudando a vida de pessoas transgênero no Brasil. O projeto começou com a busca por melhoria no acesso e na formação educacional desse público. Foi assim que Maite Schneider, Laerte Coutinho, Márcia Rocha e Letícia Lanz fundaram a Associação Brasileira de Transgêneros (ABRAT) com enfoque na promoção da educação e informação. O projeto cresceu e, em 2013, as fundadoras perceberam que o entrave para inclusão dessas pessoas não se tratava apenas de uma carência educacional. “No primeiro levantamento que fizemos, chegamos ao número de que 40% dos currículos que recebemos tinham nível superior e 30% tinham ensino médio e/ou curso técnico. E esse índice se mantém até hoje”, afirma Márcia Rocha, advogada, empresária e coordenadora da Transempregos.
Uma das pessoas que tiveram a vida mudada pela Transempregos foi a Amanda Matricardi, administradora de 26 anos. Ela contou que já tinha passado por diversas experiências de entrevistas de emprego nas quais tinha todos os requisitos e habilidades, sabia que era capaz de assumir a vaga, mas nunca era chamada. Em 2017, ela conheceu a plataforma, viu uma vaga de estágio e conseguiu o emprego. Hoje, formada, cursando pós-graduação, é analista de atendimento ao cliente em uma multinacional da indústria química. “Nunca pensei que um projeto fosse mudar tanto a minha vida. Nos empregos que tive, por meio da Transempregos, sempre fui muito bem recebida e respeitada. Não tenho do que reclamar”, celebra Amanda.
Para a administradora, o trabalho de parceria entre a Transempregos e as empresas proporciona às pessoas trans serem muito bem recebidas nos locais de trabalho. “Já tive empregos sem a ajuda da plataforma e passei alguns sufocos. Já nas experiências com eles, sempre fui recebida por pessoas receptivas, que foram muito importantes para a Amanda que sou hoje. Elas me apoiaram e deram segurança. Só tenho a agradecer”, comemora. Ela faz parte do universo de cerca de 24 mil pessoas que utilizam a plataforma, a qual teve um aumento de 315% entre 2020 e 2021. Nesse período, 707 profissionais trans conseguiram emprego. “Vale lembrar que estes são os que as empresas nos dão feedback. Somos três pessoas tocando tudo, não conseguimos falar com todes que nos procuram. Devemos ter mais empregades por aí”, explica Márcia Rocha.
Para buscar colocação profissional a Transempregos conta com 715 empresas parceiras, sendo 111 chamadas de Trans Friendly, que são empresas que abrem todas as suas oportunidades e filtros de seleção para atração de talentos sem discriminações ou vieses inconscientes.
Neste contexto, a pandemia da Covid-19, apesar de ter causado prejuízos aos mais vulneráveis, acabou criando novas oportunidades de mercado com o trabalho remoto. “Com a possibilidade de trabalho à distância e muitos afastamentos, as empresas se abriram e conseguimos muitas vagas para o público transgênero”, comemora Márcia Rocha. Segundo ela, um dos setores que mais empregam é o de telemarketing, por não exigir que a interação seja presencial, ainda um resquício de preconceito. “Mas temos tido cada vez mais vagas no varejo e na área de tecnologia”, revela a coordenadora do projeto.
Os números mostram que a ideia de as pessoas trans não terem acesso à educação é um mito. “Existe dificuldade de estudo? Sim, mas nem sempre. Hoje as famílias têm aceitado. Temos legislação para nome social, banheiro... As escolas vêm se adaptando para abraçar as pessoas LGBTQIA+”, conta Márcia Rocha. Segundo ela, também existem aqueles que sempre tiveram apoio da família ou os que permaneceram sem se assumir até terminar a faculdade ou conseguir um bom emprego. “Temos pessoas que se assumiram depois de serem sócias e diretoras de grandes empresas. Eu mesma me assumi quando já era empresária e advogada”, revela.
“Existe a história de sucesso, mas não se vê muito. O que mais se vê e fala são as travestis, principalmente, em extrema vulnerabilidade”, revela a coordenadora. “Por isso, grande maioria do senso comum pensa assim. Mas não é. Homens trans não estão na prostituição, por exemplo. Não dá para generalizar”, afirma.
Passado e futuro
Há 20 anos, quando a Revista Mátria começou a ser editada, os direitos das pessoas LGBTQIA+ basicamente não existiam. “Há 15 anos, quando entrei no ativismo, não existia nada. Nenhum direito. Não tinha cirurgia no SUS para homens trans. Tinha algo experimental para mulheres trans. Não atendiam travestis”, relembra Márcia. “De lá para cá, conquistamos vários direitos. Basicamente, nos últimos 10 anos. Tudo muito recente, mas conquistamos muito. Somos um dos países do mundo com mais direitos para LGBTQIA+”, salienta.
Para ela o pensamento brasileiro tem mudado e evoluído, mas ainda é insuficiente. “Ainda é muito difícil! Moro em São Paulo e, aqui, temos a sensação de um grande avanço, mas ainda assim temos muito preconceito, desinformação e ignorância”, lamenta a coordenadora da Transempregos. Segundo ela, o avanço tem acontecido graças a novelas, filmes e livros que têm se popularizado, além das palestras que o Movimento LBGTQIA+ faz por todo o Brasil. “Mesmo assim, ainda estamos muito longe do ideal”, diz.
Depois de passar por apertos e boas experiências a jovem Amanda recomenda persistência e resiliência. “Não é fácil. É muito difícil. Temos que lutar pelos sonhos e objetivos”, avisa. Para ela, a formação acadêmica é um referencial muito importante. “Nem todo mundo consegue. Nem todos tem condição financeira e tempo, mas é preciso tentar.” Ela conta que, quando chegou sua vez, fez Enem e buscou o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) para pagar a faculdade. “Ainda busco por bolsas de estudo. É a forma que temos para buscar capacitação. É preciso buscar meios porque hoje temos vagas para ocupar com a Transempregos”, lembra a administradora.
Para o futuro, Márcia diz se basear no que vem acontecendo desde o início da plataforma. “De 2013 para cá houve muito avanço no número de empresas parceiras e vagas disponibilizadas. E, com isso, as contratações tiveram aumento muito grande. Então, olhando para trás, isso deve se manter e avançar, melhorar ainda mais. Mas não dá para ter certeza. Mas, acredito que vai ter melhora no mercado para as pessoas trans”, profetiza a coordenadora do projeto.
Mas o que falta para sermos mais inclusivos? “Minha luta é para mudar a forma como a sociedade nos vê. Não temos escolha. Ninguém escolhe ser assim”, explica Márcia Rocha. “A única escolha é contar ou não. E não contar implica em graves problemas de identidade, psicológicos. Muita gente não consegue simplesmente não contar. Então, é muito difícil ser trans. Não é fácil. O mundo não entende. As pessoas não compreendem. Não há escolha no desejo. A gente gosta do que a gente gosta. A gente sente atração pelo que sente atração e a gente se sente como a gente se sente. Então, a grande questão das pessoas trans é poder ser quem é. E o mundo precisa aprender”, desabafa.
Para ela, é necessário que o mundo entenda que pessoas trans são iguais às outras. “Tento fazer com que as pessoas entendam que queremos só viver, trabalhar, amar, ter família, fazer compras. Viver como qualquer outra pessoa”, finaliza.