Escrito por: CNTE

Entrevista - Célia Xakriabá - Bolsonaro elegeu a nós, povos indígenas, como inimigos número 1 de seu projeto

"Bolsonaro elegeu a nós, povos indígenas, como inimigos número 1 de seu projeto"

A professora Célia Xakriabá conta como os povos indígenas estão enfrentando a pandemia de COVID-19, de um lado, e o Governo Federal de outro os 31 anos, a professora Célia Xakriabá é um exemplo de protagonismo: ela foi a primeira indígena a representar seu povo na Secretaria de Educação do estado de Minas Gerais (2015-2017) e fez parte da primeira turma de Educação Indígena da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 2013, quando se formou em Ciências Sociais. Além disso, concluiu o mestrado em Desenvolvimento Sustentável, Área de Concentração em Sustentabilidade Junto a Povos Tradicionais, na Universidade de Brasília (UnB), em 2018. Primeira mestra de seu povo, atualmente cursa o doutorado em Antropologia na UFMG. Nesta entrevista, exclusiva à Revista Mátria, ela conta como os povos indígenas, sobretudo as mulheres, estão atuando coletivamente para se proteger da pandemia de COVID-19, e denuncia os ataques do Governo Federal.

 Revista Mátria: Você faz parte das primeiras gerações de indígenas que tiveram acesso à educação pública básica e superior. Como isso contribuiu na sua formação como liderança?
Célia Xakriabá: A educação pública está presente desde os meus anos iniciais na escola. Sou parte da primeira turma da Escola Indígena Estadual Xukurank, em São João das Missões (MG). Tenho orgulho de fazer parte dos primeiros resultados da criação das escolas estaduais indígenas, com os primeiros professores indígenas. Ninguém me ensinou
que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil. Costumo dizer que as fake news não começaram em 2018 - e elas ainda continuam existindo na sociedade, principalmente quando se
mata a história dos povos indígenas, a nossa narrativa. As fake news continuam cada vez que as pessoas nos matam, achando que não somos de verdade. Somos 305 povos, falamos
274 línguas, mais de 900 mil pessoas, uma diversidade enorme.

RM: Antes mesmo da pandemia começar, já existia essa política velada contra "minorias" de todos os tipos, por parte do governo. Como isso afetou os povos indígenas?
A arma do "calibre 17" segue matando; a letalidade do governo é maior do que qualquer arma de fogo, é uma violência nua e escancarada. É um genocídio que não é uma fatalidade; é legislado, é o aparato do Estado brasileiro querendo nos matar. Somente em 2019, foram 130 lideranças indígenas mortas. Morremos duas vezes coletivamente: quando matam nossa identidade e quando matam nosso território, nosso modo de vida. O ecocídio é um crime sobre os povos indígenas e a humanidade. Temos que lutar coletivamente. Bolsonaro elegeu a nós, povos indígenas, como inimigos número 1 de seu projeto. A frente dos povos indígenas não é só uma escolha, é um ato de resistência. Nós, povos indígenas, somos
5% da população do mundo e somos responsáveis por cuidar de 82% da biodiversidade do mundo. E, mesmo assim, as pessoas não entendem a importância dos povos indígenas. Nós vamos enfrentar uma guerra muito maior, com situação de maior vulnerabilidade, que são as mudanças climáticas. Somos os principais ativos da humanidade para reduzir os impactos das mudanças do clima.

RM: Como as mulheres estão se organizando para enfrentar a pandemia de COVID-19?
CX: Nós mulheres nunca estivemos paradas, sempre estivemos marchando nos territórios. Na verdade, sempre existiram as parteiras, as benzedeiras, elas sustentam o território. Em 2019, fizemos a primeira marcha indígena até Brasília, com mais de 110 povos diferentes, mulheres que nunca tinham ido nem à cidade fora dos territórios, a maioria delas nunca tinham ido a Brasília, e nós reunimos muitos corações. Quando se trata da luta, a diversidade da língua não é uma fronteira. Quando sua avó, seu filho, sua mãe, está sendo atacada, há resistência. Com a nossa potência, com a nossa força, conseguimos um encontro com o então ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta. É muito importante dizer isso, porque a primeira marcha não acabou ali, seguimos defendendo a importância do território: quem tem território tem lugar para onde voltar, tem cura. O território é nosso corpo, nosso espírito. Depois da marcha, fizemos um plano de percorrer os territórios indígenas fortalecendo as eleições das mulheres indígenas, pelo "mãedato" - assim como eu, que não sou mãe, nós mulheres doamos nosso tempo para a luta, no útero da luta. Isso é muito importante para resistir, de forma coletiva. Nós tivemos assembleia no Acampamento Terra Livre
Online, em abril de 2020 - mesmo que tivéssemos poucas pessoas, a mesa de mulheres foi a que mais teve repercussão, com um milhão e meio de acessos. Mesmo no momento da
pandemia de COVID-19, as mulheres estão na linha de frente, nas barreiras sanitárias, ajudando a organizar a emergência indígena. O chamado global para a cura da terra reuniu
mulheres do mundo inteiro, pois curar a terra é curar a humanidade.

RM: Nas redes sociais, cresce a atuação de jovens que organizam mobilizações e buscam ajuda para situações pontuais de crise (denúncias de incêndios nas florestas e situações de violência, doações de alimentos, etc.). Como é essa atuação online?
CX: Precisamos descolonizar as telas também. Nós temos o racismo da ausência, do porquê nós não estamos nesses lugares. As pessoas tomam um engajamento antirracista, mas a discussão de raça precisa ser mais aprofundada, porque nós somos povos para além de raça. Nós, indígenas, sofremos o lugar da ausência da nossa própria história, que é diversa. A comida que dá sustança é colorida no prato, essa diversidade para a terra, ela não se sustenta se não tiver cultura. A colonização do pensamento, do olhar, do corpo e da terra, é voltada para a monocultura. Nesse sentido é importante descolonizar as telas e trazer vozes coletivas. Na aldeia digital, muitos jovens e artistas indígenas estão no TIK TOK, na MÍDIA NINJA, e em muitos lugares - as mulheres vem se destacando porque têm um olhar sensível, são elas que continuam sustentando as mãos e os pés no território. E mesmo
quando a gente ocupa as redes, sofremos com o racismo e o preconceito. No período das eleições de 2020, fui atacada por publicações mentirosas e racistas, publicadas no Facebook
- e ganhei em primeira instância. A decisão foi tomada pelo juiz Frederico Vasconcelos, da comarca de Manga, MG, que obrigou o Facebook a retirar as publicações e identificar os autores. A intolerância política nas redes precisa ser combatida e punida com o rigor da lei. É inadmissível que nossas lideranças sejam perseguidas na internet e nos territórios.

RM: Quais são as principais demandas comuns dos povos indígenas hoje?
CX: Nesse período, o que nos preocupa é mais do que o vírus, é o governo que tem um projeto muito certeiro, que é o nosso corpo. Nós somos vítimas como povos indígenas. Tivemos que enfrentar Projetos de Lei importantes, que precisavam ser aprovados e levou muito tempo: nós enfrentamos PLs da grilagem, defendemos a saúde pública, a saúde indígena, o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Nós somos prioritários, somos corpos em situação de vulnerabilidade, há mais de 500 anos. Somos 900 mil pessoas, e o Ministério da Saúde estava excluindo indígenas que vivem em contexto urbano. O ministro Eduardo Pazuello estava contando apenas com os territórios demarcados, regularizados. Nós da Articulação de Povos Indígenas (Apib) entramos com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 709), para obter vacinas para todos e o Supremo Tribunal Federal obrigou o Governo Federal a cumprir esse direito. De um lado, há a politização da vacina, de outro, precisamos combater as fake news, que desacreditam a eficácia da vacina. Por isso, lançamos a campanha nacional #VacinaParente em defesa de vacinas para todos. Não dá para aceitar doses simbólicas, precisamos garantir a vacinação na totalidade, estamos em 1% da população e a letalidade da COVID-19, entre povos indígenas, foi para 8%; é muito maior do que o restante da população. Para nós, é uma grande ameaça.

RM: Quais são as perspectivas para além da COVID-19?
CX: Acredito que há um chamamento da realidade - aqueles que não escutarem o chamado dos povos indígenas, não vão escutar o chamado de mais ninguém. Nesse momento, a luta não é só imunizar, é por reativar o princípio da humanidade. Eu falo que as pessoas que não têm se sensibilizado contra a cegueira social estão morrendo. Mesmo num momento muito difícil, a COVID-19 veio fazer a humanidade enxergar. É urgente para a gente ver que temos um desafio muito grande, que são as mudanças climáticas, vamos ter que enfrentá-las e, se não tiver respiração para os povos indígenas, não vai ter para mais ninguém - o dia que dermos o último suspiro, a humanidade também já não vai conseguir mais respirar.

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