Escrito por: CNTE

Governo lança cartilha da educação domiciliar e regulamentação da modalidade avança na Câmara

Mais de 300 entidades educacionais veem risco de aprofundamento das desigualdades sociais e educacionais 


Foto: Winnie Bruce/Stop The Spread

A regulamentação da educação domiciliar – também chamada de homeschooling –, ganhou força na última semana. Na quinta-feira (27), o Ministério da Educação (MEC) lançou a cartilha “Educação Domiciliar: um direito humano tanto dos pais quanto dos filhos”, que advoga pela necessidade de aprovação da prática no Brasil.

No documento, a pasta define a educação domiciliar como “uma modalidade de ensino dirigido pelos próprios pais, com vistas ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para a vida, exercício da cidadania e qualificação para o trabalho”, e apresenta casos de jovens dos Estados Unidos que estudam nesse regime.

Segundo o MEC, a educação domiciliar já abarca 35 mil crianças e adolescentes no Brasil. Ainda de acordo com o ministério, a regulamentação da modalidade seria uma forma de garantir o “direito à liberdade das famílias educarem os filhos e o direito dos filhos à educação de qualidade”.

O documento foi divulgado um dia após uma reunião da Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados na qual foi apresentado um parecer favorável à aprovação do projeto de lei 3.262 – apresentado em 2019 pelos deputados do PSL Bia Kicis, Chris Tonietto e Caroline de Toni e relatado na comissão pela deputada Greyce Elias (Avante).

O PL propõe alterar o Código Penal para prever que a educação domiciliar não configure crime de abandono intelectual.

Na cartilha do MEC, isso consta como um dos objetivos da regulamentação da modalidade, que pretende “favorecer a distinção entre o exercício do direito à liberdade educacional e o crime de abandono intelectual”.

O projeto – cuja deliberação foi suspensa em razão do início da ordem do dia no Plenário da Câmara – é uma entre várias propostas legislativas que tramitam no Congresso a respeito da educação domiciliar.

No dia 27 de abril, o PL 3.262 foi desapensado de outro projeto de lei que tramita desde 2012, o 3.179, de autoria do deputado Lincoln Portela (PR-MG), que acrescenta um parágrafo à Lei de Diretrizes e Bases (LDB) para dispor sobre a possibilidade de oferta domiciliar da educação básica.

“É uma estratégia de conseguir uma aprovação mais rápida, porque a Bia Kicis está na presidência CCJC, então consegue dar um outro tipo de andamento ao homeschooling fora desse bloco maior de proposições apensadas ao PL 3.179, que é relatado pela deputada Luísa Canziani [PTB-PR]”, analisa Marcele Frossard, assessora de políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

A autorização para que crianças e adolescentes tenham aulas em casa com a família ao invés de frequentarem a escola foi apresentada como uma das 35 metas do Palácio do Planalto durante evento em 2019 que marcou os primeiros cem dias do governo Jair Bolsonaro, mas desde então não havia avançado.

Mais de 300 organizações são contra
A movimentação chamou atenção das entidades ligadas à educação que, na segunda-feira (24/05), divulgaram nas redes sociais um manifesto contra a regulamentação da educação domiciliar e em defesa do investimento nas escolas públicas.

Assinado por 356 organizações, entre universidades, associações acadêmicas, sindicatos, movimentos sociais e organizações não-governamentais da área de educação, o manifesto defende que a regulamentação pode aprofundar as desigualdades sociais e educacionais e multiplicar os casos de violência contra crianças e adolescentes.

“A educação escolar (regular) necessita de mais investimentos e de efetivo regime de colaboração para superar os desafios históricos e atuais impostos pela pandemia e não da regulamentação de uma modalidade que ataca as finalidades da educação previstas no artigo 205 da Constituição Federal e amplia a desobrigação do Estado com a garantia do direito humano à educação de qualidade para todas as pessoas”, diz o texto.

As entidades ainda destacaram que, em meio à crise sanitária, falta apoio do governo federal às secretarias estaduais e municipais para implementar o ensino remoto e planejar o retorno às aulas presenciais, bem como para enfrentar problemas como evasão escolar e violência doméstica. Nesse contexto, o avanço da educação domiciliar é entendida como uma tentativa de “desviar a atenção do que deveria ser prioritário na gestão de superação da pandemia”.

“Mesmo fora de um contexto de exceção e emergência, a regulamentação do ensino domiciliar não se mostraria solução viável para superar os problemas enfrentados pela educação. As prioridades passam pela expansão da educação integral, tal como acontece em países mais desenvolvidos em termos educacionais. As metas do Plano Nacional de Educação (e dos planos subnacionais) precisam ser cumpridas; o financiamento público requer mais aportes, inclusive com a vinculação dos recursos do pré-sal para a educação; o Sistema Nacional de Educação carece de regulamentação para potencializar os regimes de cooperação e colaboração interfederativos, tendo o Custo Aluno Qualidade como referência, e para aprimorar a regulação da rede privada”, defendem as organizações que assinam o manifesto.

Argumentos frágeis
Para Marcele Frossard, muitos dos argumentos utilizados por quem defende a educação domiciliar – como por exemplo a Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned) – são frágeis. Um deles é o que aponta para os bons resultados dos estudantes submetidos a esse regime em avaliações de larga escala em países onde a prática é regulamentada.

“Se você colocar uma criança com uma folha de exercício e ensinar a ela apenas a fazer aqueles exercícios que caem nas avaliações de larga escala, essa criança vai tirar notas excelentes, muito melhores que as crianças da escola particular e da escola pública. Mas educação é mais do que avaliação. Essa criança não interage socialmente, não cria conflito, ela não tem que desenvolver nenhum outro aspecto de sociabilidades, de habilidades cognitivas, nada disso. Ela está num ambiente em que ela não convive com praticamente ninguém, a não ser aqueles familiares”, ressalta ela.

Para Frossard, um grande problema da educação domiciliar é a dificuldade de o Estado avaliar as condições em que o ensino está sendo ofertado. “A escola, seja ela particular ou pública, tem que abrir as portas para o governo para ser certificada e poder funcionar. No homeschooling, você não entra na casa da pessoa para saber como ela ensina o filho”, compara.

A assessora de políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação cita ainda a dificuldade do Conselho Tutelar e do Ministério Público fiscalizarem as condições das crianças e adolescentes em regime de educação domiciliar que, eventualmente, estiverem sofrendo abusos.

“A criança nessa situação perde completamente o seu direito porque se ela está sofrendo abuso psicológico, físico, moral ou sexual não tem nenhum adulto a mais para defendê-la. Não tem mais escola para saber se ela está com uma marca no corpo, se ela mudou de comportamento. São muitas as dimensões em que essa criança fica desprotegida”, alerta.

Via assessoria de imprensa, a reportagem do Portal EPSJV solicitou posicionamentos ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e ao Ministério da Educação, pastas que capitaneiam a proposta do governo federal, mas até o fechamento da matéria não havia obtido resposta.

(André Antunes - EPSJV/Fiocruz, 28/05/2021)