Escrito por: CNTE
Incansável na luta contra o racismo e a discriminação contra as mulheres, Elza Soares morreu cumprindo a promessa de cantar até o fim
Se tem uma brasileira que foi a tradução da luta e da defesa dos direitos e do lugar de mães, filhas, mulheres negras; e de brasileiros que nasceram pobres num país onde a realidade é mais dura do que para o restante da população, essa pessoa foi Elza Soares, nascida Elza Gomes da Conceição, em 23 de junho de 1930, no Rio de Janeiro, e morta aos 91 anos, em 20 de janeiro de 2022, há exatos 39 anos após a morte de Garrincha, o grande amor da sua vida.
Uma artista que fez da sua vida e do seu canto um hino de defesa de brasileiros, num país onde as chances de uma pessoa negra ser assassinada é mais que o dobro do restante da população, e onde esse grupo representa 77% das vítimas de homicídio, segundo o Atlas da violência 2021. Um Brasil que ocupa o 5º lugar no ranking mundial de feminicídio, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.
Filha de operário e lavadeira, Elza foi criada na favela de Moça Bonita (atual Vila Vintém) e, aos 12 anos, foi obrigada pelo pai a se casar com Antônio Soares, conhecido como Alaúde, de quem manteve o sobrenome. Foi mãe pela primeira vez aos 13 anos, aos 15 já tinha perdido dois filhos para a fome e, aos 21, ficou viúva. Uma história que se repete por tantas outras milhares de ‘Elzas’ espalhadas pelo Brasil e que a artista nunca esqueceu, fazendo da sua trajetória a bandeira de todos.
A história como artista começa aos 23 anos, quando se submeteu a um teste num programa de calouros na Rádio Tupi, “Calouros em Desfile”, apresentado por Ary Barroso que, ao ver aquela menina franzina, vestida com roupas duas vezes o seu tamanho e ajustadas com alfinete de fralda, disparou: “Menina, de que planeta você veio?”, perguntou Ary, arrancando gargalhadas da plateia. “Do mesmo planeta que o senhor, seu Ary, do Planeta Fome”, enfrentou a menina que, na época, trabalhava como encaixotadora e conferente em uma fábrica de sabão. A resposta surpreendeu o auditório que segurou as risadas para ouvir a jovem se apresentar. Elza cantou, encantou e venceu.
A carne mais barata do mercado é a carne negra [1]
“Estamos assistindo o nascimento de uma estrela!”, exclamou Ary Barroso, logo após a apresentação. E, quase cinco décadas depois, em 1999, a menina franzina seria eleita a Voz do Milênio pela rádio BBC de Londres... Mas, isso era Elza Soares, uma artista que fez do Planeta Fome sua resistência e não sucumbiu, extrapolando rótulos e sobrevivendo a tudo e a todos. “Sou feminista convicta. Vivo protegendo as mulheres e vejo que, às vezes, somos burras demais. Temos que pensar mais em nós mesmas e não nos doarmos tanto. No meu show, eu faço um alerta para as mulheres ficarem espertas. Já passou o tempo de sofrermos caladas”, dizia Elza.
Seu legado, marcado por altos e baixos na carreira, soma um Grammy Latino, dois Prêmios da Música Brasileira e até um Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, pela melhor trilha sonora original. E a trajetória da potência vocal inconfundível que, por meio da sua música, sempre deixou clara a palavra do direito das mulheres no Brasil. Em 1959, despontou com a música “Se Acaso Você Chegasse”, uma composição de Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins que também deu nome ao primeiro disco de Elza. Ao longo dos anos 1960, conquistou o título de Rainha do Samba, ao qual ela nunca se limitou. “Esse título de rainha do samba ficou para trás. Quem tem coroa aqui? Rainha faminta? Quero não”, disse a cantora em 2019.
Eu não vou sucumbir [2]
Na década de 1980, vivenciou uma espécie de ostracismo na carreira, mas ainda assim lançou o disco “Somos Todos Iguais”, em 1984, no qual canta “Milagres”, de Cazuza e Frejat. No mesmo, gavou a música “Língua” com Caetano Veloso, que faz parte do álbum “Velô”, do compositor baiano. “Tive a honra de ser procurado por ela, quando de sua iminente decisão de abandonar a carreira e/ou o Brasil”, escreveu Caetano em seu perfil no Instagram. “Fui capaz de convencê-la a ficar porque entendi que aquilo era uma espécie de pedido de socorro. Compus o samba-rap ‘Língua’ e a convidei para cantar a parte melódica. Assim, ela voltou a cantar e a receber atenção”, completou o músico. Para ele, Elza “foi uma concentração extraordinária de energia e talento no organismo da cultura brasileira”.
Em 1986, um acidente de carro levou seu filho, o Garrinchinha, fruto do relacionamento de 17 anos com Mané Garrincha. A união rendeu à ela mais uma batalha: como o jogador ainda era casado, no início do relacionamento (ainda que já em processo de separação), ela foi tachada de destruidora de lares, e ainda de destruir a carreira do próprio Garrincha, sendo acusada de ter deixado o craque sucumbir ao alcoolismo.
“Como explicar que Garrincha sempre bebera, muito antes de conhecê-la, e que, sem Elza, ele teria morrido ainda mais cedo?”, escreveu Ruy Castro em sua defesa. “E que, se alguém teve prejuízo profissional com aquela relação, fora ela – porque Elza já era a super Elza Soares, quando o conheceu, e Garrincha não sabia, mas já começara a deixar de ser Garrincha”, completou o escritor. No casamento, Elza também viveu um relacionamento conturbado, vítima de violência doméstica. E, curiosamente, Elza morreu em 20 de janeiro, no mesmo dia da morte de Garrincha.
A língua é minha Pátria [3]
O ator Lázaro Ramos em homenagem à artista, em seu perfil na rede social Twitter, destacou a força da mulher Elza. “Obrigado por inspirar tanto e por não se calar nunca”, escreveu Ramos. A filósofa, feminista negra e escritora, Djamila Ribeiro, que conhecera Elza e fora convidada para escrever a resenha de seu álbum “Mulher do Fim do Mundo” desabafou: “Foi uma mãe para as mulheres negras. Cantou as nossas potências, o nosso amor, dores e medos. A nossa fúria, tristeza, indignação. Do ‘Planeta Fome’, ela se espalhou pelo mundo, rasgando como água indomável as cantigas existenciais das mulheres negras brasileiras. Junto a ela, fomos”, declarou Djamila.
Na chuva de confetes deixo a minha dor [4]
O álbum “A Mulher do Fim do Mundo” foi o responsável pela guinada na carreira de Elza. O primeiro só de canções inéditas, feitas por músicos como Rodrigo Campos, Kiko Dinucci, Romulo Fróes e Celso Sim, foi aclamado pela crítica dentro e fora do Brasil. Segundo o crítico Luiz Fernando Vianna, o álbum fez Elza “renascer das cinzas” e se aproximar do público mais jovem. “A mulher do fim do mundo é aquela que busca, é aquela que grita, que reivindica, que sempre fica de pé. No fim, eu sou essa mulher”, disse Elza Soares em entrevista ao HuffPost Brasil, em 2020.
A música título do álbum é Elza Soares em estado puro. Principalmente o refrão, que funciona como uma espécie de premonição quando diz: “eu sou, eu vou até o fim cantar / eu vou cantar até o fim”. E foi feita a sua vontade. Até o fim, em 20 de janeiro de 2022, quando a voz que cantou, gritou, lutou, defendeu e encantou, enfim se calou.
[1] Carne, música do álbum Do Cóccix até o Pescoço, lançado em 2002
[2] Libertação, música do disco Planeta Fome, lançado em 2019
[3] Língua, música do álbum Velô, lançado em 1982
[4] Mulher do fim do mundo, música do disco Mulher do fim do mundo, lançado em 2019