Escrito por: CNTE

Inclusão - Estudantes com deficiência x ensino remoto

Desafios incluem falta de acesso à internet e adaptação ao ensino a distância

Aulas pela manhã no Centro de Educação Especial, terapias e atividades à tarde. Essa era a rotina do estudante Arthur Castro, 12 anos, morador de Planaltina (DF), cidade cerca de 42 km do centro da Capital Federal, antes da pandemia do Novo Coronavírus chegar ao Brasil. Com o isolamento social, necessário para conter a pandemia, as escolas ficaram fechadas durante alguns meses. Após a longa pausa, a solução adotada foi o improvisado ensino remoto. Desta vez, Arthur, que tem o diagnóstico de Síndrome de Down e Transtorno do Espectro Autista (TEA), estudaria de casa e tendo como principal suporte a mãe, Irani Castro, 50.

Para ela, a nova tarefa era desafiadora. "Como mãe, estou com ele o tempo inteiro. Levando para a escola, levando em terapia, levando em consulta e como ele fica comigo o dia inteiro, para mim era bem complicado porque ele não queria obedecer aos comandos", relata a dona de casa. "A psicóloga foi de suma importância, me dando estratégias diferentes para eu usar com ele, e aí ele foi aceitando e executando as atividades. A professora também me deu muitas dicas e era muito tolerante quando eu não encaminhava as atividades que não conseguia executar", acrescenta Irani.

O contato de Arthur com os professores, que antes era direto, agora passava pela mediação da mãe, responsável por ajudar o filho nas atividades e mostrar aos professores a execução delas. "Eles iam me passando as atividades, eu ia registrando por meio de vídeos ou fotos Foto: Acervo pessoal e encaminhava pra eles. Logo depois que disponibilizou
a plataforma eu poderia encaminhar para eles ou direto na plataforma", relata Irani.

Irani tinha ainda outra missão, a de mostrar a evolução de Arthur para que ele pudesse ingressar no ensino regular em 2021. "A criança só avança com o estudo de caso da escola junto à Secretaria. Esse ano não teria. Aí eu tive que ter esse cuidado de mandar todos os vídeos para mostrar o avanço dele, mostrando que ele já tinha avançado bastante e lutando para que ele vá para a inclusão", conta a mãe.

Falta de concentração
Também moradora de Planaltina, Maira Franco, 41, é mãe de um adolescente que cursa o primeiro ano do Ensino Médio, Felipe Franco, 16. Para ela, os desafios da educação remota foram diversos, embora o filho apresente uma forma leve do TEA.

Diagnosticado com Síndrome de Asperger aos 10 anos, Felipe sempre estudou no ensino regular. "Até então, na escola que ele estudava, ele era tido como superdotado, mas na verdade não era. Essa questão da superdotação foi mascarada porque ele tinha realmente muita habilidade para determinadas áreas, principalmente inglês e aí todo mundo achava que ele era superdotado, mas a questão das relações interpessoais era muito complicada", relata Maira.

Felipe retornou às aulas já em abril, mas de forma remota. Para Maira, uma das principais dificuldades estava relacionada à concentração do filho que agora assistia às aulas em frente à tela de um computador no escritório da casa. "A diversão dele era no computador, então para ele entender que naquele momento o computador não era utilizado só para diversão, que era para aula também, foi um período bem difícil", conta.

Nas avaliações também houve mudanças. "Ele não aprendeu da mesma forma, tanto que a maioria das provas foram adaptadas para ele", conta a mãe. De acordo com Maira, antes da pandemia Felipe costumava fazer provas comuns, com adaptações apenas em avaliações de disciplinas onde apresentava dificuldades. O isolamento afetou até mesmo a preparação de Felipe para os exames de ingresso à universidade, que também aconteceria remotamente.

"A gente entendeu que para o Felipe seria mais um tempo no computador para a aula e que já estava muito pesado pra ele. Então a gente não fez a adesão ao programa que a escola
ofertou", relata Maira.

Desafios da educação na pandemia
Assim como os pais, os professores também enfrentaram mudanças bruscas como a adequação repentina de conteúdo, o suporte tecnológico e a falta de contato com os alunos.
Maira, que também é educadora e faz parte da equipe especializada de apoio à aprendizagem de uma escola pública do Distrito Federal, relata que uma das maiores dificuldades é com a adaptação do material didático. "Às vezes o professor quer trabalhar um determinado conteúdo, que se fosse presencialmente, estaria do lado do aluno ajudando a fazer a atividade. Na forma remota ele não consegue ter essa interação e o aluno não consegue fazer essa atividade", conta.

Além disso, a quantidade de aulas por semana é reduzida devido à dificuldade de conexão com a internet por parte dos alunos. De acordo com ela, muitas vezes, "numa turma que tem 30 alunos, o professor comenta que 9 alunos participaram daquela aula online. E aí ele prefere postar atividades porque é mais fácil para o pai ou para o aluno acessar. Em caso de dúvida, o professor está disponível pelo WhatsApp", explica.

A educadora Katia Cristina de Jesus, 49, que atua no aprendizado de crianças com deficiência, relata: "Eu domino muito pouco a tecnologia, então pra mim, o maior desafio foi ter que aprender a trabalhar remotamente com meus alunos". Para ela, apesar das dificuldades, o cenário acabou aproximando pais e professores. "A pandemia veio trazendo um lado ruim, mas a gente observa agora que os pais, por mais dificuldades que tenham de acompanhar os filhos, se tornaram mais presentes", comenta.

Inclusão digital
De acordo com o levantamento TIC (Tecnologias da Informação e Comunicação) Domicílios 2019, publicado em maio de 2020, no Brasil, cerca de 20 milhões de brasileiros não têm acesso à internet, o que corresponde a 28% da população. A falta de acesso foi um fator complicador para o ensino a distância, conforme explica a Professora Márcia Pletsch, especialista em Altas Habilidades pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

"Não houve um plano de apoio aos municípios, não houve um plano federal que garantisse que todos tivessem, por exemplo, acesso à internet. Cada município teve que fazer ações de acordo com a sua capacidade diária e de acordo com as disputas locais, considerando que foi um ano eleitoral, então nem sempre é tão simples. Em alguns municípios é como se o ano letivo não tivesse existido", explica.

Para a especialista, o aumento das desigualdades e da pobreza também impactaram o ensino: "Fiz uma pesquisa e a gente constatou que as desigualdades sociais que se ampliaram enormemente no país também se reproduzem no acesso à educação, principalmente dessa parcela mais vulnerável que são as pessoas com deficiência. Cerca de 90% das pessoas
com deficiência no Brasil é pobre ou extremamente pobre, e mais de 90% é matriculada na educação básica pública. Para quem tem deficiências mais severas, a desigualdade triplicou a potência", pondera.

Família
Para Adriana Borges, professora de Políticas Públicas de Educação Inclusiva da UFMG, a importância da família no processo de aprendizagem tornou-se clara com as limitações impostas pela pandemia."Se antes, no presencial, a relação com a família já era fundamental, nessa relação de ensino remoto ela é muito mais importante", explica. Para ela, a parceria entre pais e professores é essencial: "Essa questão da deficiência está dentro de um contexto maior de vulnerabilidade social, são famílias que além de tudo tem uma questão relacionada à pobreza. Às vezes, tem famílias em que os pais não conseguem auxiliar as crianças porque eles não receberam educação, eles não têm a formação pra isso. Outras famílias não têm tempo pra se dedicar à criança. Então é importante que os professores saibam medir, mensurar o que eles vão cobrar nesse momento das famílias, que estão muito sobrecarregadas"

Inclusão e desenvolvimento
Para Irani, a inclusão do filho no ensino regular representa um grande passo rumo ao desenvolvimento de Arthur. "Eu acho que toda mãe que tem um filho com necessidades especiais luta pela inclusão das crianças. Eu acho que se não há inclusão, há segregação e aí eu já não concordo", ressalta.

Márcia Pletsch acredita que a inclusão é um direito das pessoas com deficiência: "Conviver com a diferença é um direito inquestionável. O que as nossas pesquisas mostram é que a convivência com a diferença é um potencializador do desenvolvimento humano e não o contrário". Ela acrescenta: "O Supremo acabou de votar que a prioridade é a escola inclusiva não mais escola especial".

A especialista se refere à decisão do Ministro do STF Dias Toffoli sobre a chamada Política Nacional de Educação Especial desenvolvida pelo governo Bolsonaro. O Decreto 10.502/2020 é visto como retrocesso por especialistas do campo da educação, à medida que sugere o ensino de alunos com deficiência em salas e escolas especiais.

Para Márcia, é questionável a ideia base do documento de que a família pode escolher pelo ensino mais adequado. "Num país como o nosso, as famílias não têm condições de escolher, não que ela não possa, mas que ela não tem escolha porque a maioria é pobre ou extremamente pobre. Então é uma perspectiva liberal de educação que tira a responsabilidade do estado e coloca a responsabilidade da educação dessa criança com deficiência na família", explica a especialista.

De acordo com Pletsch, a ideia de um ensino exclusivo está na contramão das últimas ações de países desenvolvidos, já que a maior parte deles incorporou a Declaração dos Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU em sua legislação. Além disso, a inclusão tem um papel importante no desenvolvimento intelectual, interpessoal e físico desses alunos.

"Se você colocar uma criança em uma classe onde nenhuma delas fala, mesmo que ela tenha potencial, ela também não vai falar porque não vai ter uma criança que a instigue a falar. Agora se você colocar uma criança que tem autismo, que não interage, que não fala, numa turma em que todas brincam, falam, correm, ela vai começar a melhorar a sua interação, a sua comunicação. Ela vai sentir necessidade e isso está comprovado na literatura científica tanto nacional quanto internacional", explica.

Para a Professora Adriana Borges, a medida é também inconstitucional. "O direito à educação é garantido pela Constituição e a educação especial é uma modalidade de ensino. Ela não pode substituir a educação infantil, o ensino fundamental, o ensino médio. A educação especial é transversal. Como modalidade, ela tem que estar presente nesse ensino, mas ela não pode substituir", explica. Adriana acredita que a decisão de Dias Toffoli representa essa ideia. "Foi importante agora ela ter sido suspensa e a gente espera que ela seja revogada", destaca Adriana. 

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