Escrito por: CNTE
“A garantia do território é que assegura também a nossa essência”, afirma a líder indígena Sônia Guajajara
Em junho de 2021, a luta indígena pela defesa dos territórios de seus ancestrais ganhou destaque no noticiário nacional. Foi aprovado, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 490/2007, que faz mudanças na Lei 6.001/1973 (o Estatuto do Índio), tirando da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) a competência pela demarcação das terras indígenas e instituindo o chamado Marco Temporal, o qual determina que são terras indígenas apenas aquelas que estavam ocupadas pelos povos tradicionais em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da atual Constituição Federal. O que significa que, se virar lei, vai deixar vulneráveis os limites das terras dos povos indígenas e à mercê do agronegócio, do garimpo ilegal, da grilagem de terras e do desmatamento criminoso de madeiras clandestinas.
A ativista e líder indígena Sônia Guajajara conta que, embora a Constituição brasileira garanta a demarcação dos territórios indígenas, a luta para que esse direito seja assegurado ainda é a maior do povo indígena. “Para nós, a garantia do território é que assegura também a nossa essência, enquanto ser humano, enquanto indígena, porque a terra para nós é a mãe”, desabafa.
Coordenadora executiva da Articulação dos povos indígenas do Brasil (APIB), a ex-candidata à vice-presidência da República pelo PSOL alerta que, no atual governo brasileiro, a terra virou o principal objeto de disputa política e econômica para atender a ganâncias mercadológicas ligadas à terra. “Ainda em campanha, Bolsonaro anunciou que, no seu mandato, não teria nenhuma terra demarcada para povos indígenas. Então, ele vem cumprindo isso. Tentando adotar medidas, com a sua base aliada no Congresso, para flexibilizar esse direito e entregar o território indígena para o agronegócio, a mineração, a indústria madeireira”, ironiza.
Vale lembrar que, além de lutar contra a instituição do chamado Marco Temporal, as mulheres indígenas ainda enfrentam problemas como a infertilidade por presença de mercúrio advindo dos garimpos ilegais, o racismo, o fascismo e o machismo. Guajajara conclui que a realidade das mulheres indígenas brasileiras ainda é muito invisibilizada no país. “Essa é uma realidade já comprovada, sobretudo nos estados de Roraima e Pará. Há muita contaminação de mercúrio nas crianças, nas mulheres e está, cada dia mais, prejudicando a saúde, porque é a água que elas bebem, é o peixe que elas comem”, salienta.
Os povos indígenas sofrem também com a escalada do desmatamento. A exemplo do relatório publicado no dia 28 de janeiro deste ano, pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) junto ao Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados (OPI), que mostra a amplitude do problema. O texto revela que, nos três últimos anos de medição do sistema Prodes (Projeto de Análise por Satélite das Terras), o desmatamento na TI Ituna-Itatá, território ainda não demarcado, que possui evidências de presença de povos isolados, representou 84,5% do total, somando 22.076,6 hectares desmatados.
Na resistência aos ataques sofridos pelos povos indígenas, além de Guajajara, estão organizadas mulheres de todos os estados brasileiros. Em 2021, foi criada a Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA), que deu identidade à luta já anteriormente organizada. Um exemplo de sua atuação é a realização da Marcha das Mulheres Indígenas pelo Brasil, que, desde 2019, vem discutindo os temas emblemáticos mais apontados como relevantes pelas mulheres indígenas.
Guajajara lembra que esteve, em novembro de 2021, na 26ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP-26), quando formou a maior coligação de mulheres indígenas já vista naquele evento climático, tendo uma participação de relevância em uma agenda com diversas autoridades, a sociedade civil e artistas. Sônia explica que é preciso fazer um processo de escuta, para que juntas possam buscar solucionar os problemas identificados, como é o caso da invasão dos territórios indígenas.
“A participação na política, hoje, é uma das formas de combater toda essa urgência”, explica a ativista. “Temos a Joenia Wapichana, no Congresso Nacional, a primeira mulher indígena no Legislativo, mas queremos aumentar essa pauta”, completa. Ela explica que também existem mulheres atuando em outras frentes de resistência, como é o caso da produção audiovisual, a venda de artesanato e a prática da medicina tradicional.
Crime e Castigo
Não bastasse as perseguições e o total descaso por parte do Governo Federal, o crime organizado também resolveu reivindicar o seu quinhão nas terras indígenas. Uma reportagem publicada, no ano passado, pelo portal UOL denuncia a presença da facção criminosa, que se autodenomina Primeiro Comando da Capital (PCC), dentro do território ianomami, em Roraima. Os criminosos começaram explorando o garimpo, no rio Uraricoera, e hoje já dominam boa parte das terras onde controlam o tráfico de drogas, a venda de gasolina, de alimentos, de bebidas, a segurança particular e até casas de prostituição.
Em outro canto do Brasil, na madrugada do dia 24 de junho do ano passado, um incêndio destruiu parte da Escola Estadual Indígena Xukurank, a biblioteca e a casa de medicina tradicional da aldeia Barreiro Preto, na Terra Indígena Xakriabá, em São João das Missões (MG). Por sorte, ninguém ficou ferido, mas o golpe incendiou a história daquela nação. “Temos o sentimento de impunidade e insegurança, pois até o momento não tivemos uma resposta clara, por parte da justiça, com relação ao andamento das investigações”, lamenta o líder indígena Jusnei de Souza Santos. “Pedimos mais agilidade e empenho por parte das autoridades, para que não deixe que esse crime caia no esquecimento”, desabafa.
Coincidentemente, o incêndio aconteceu um dia depois de os Xakriabás fecharem a BR-135, entre São João das Missões e Manga, por cerca de cinco horas, em protesto pacífico contra a aprovação do Projeto de Lei 490/2007, que prevê mudanças no reconhecimento da demarcação das terras e do acesso a povos isolados, que e seria votado na CCJ da Câmara dos Deputados justamente no dia seguinte.
Passado mais de meio ano da tragédia, Jusnei conta que há uma licitação para reconstruir a escola, mas a casa de medicina tradicional será recuperada com o apoio de parceiros, como o Centro Indigenista Missionário (CIMI). “A casa de medicina também tem alcance grande na proteção ambiental, trazendo algumas discussões importantes com relação à proteção do cerrado e uso do território”, explica o missionário Nilton Santos Seixas. “A partir da casa de medicina também há a valorização das sementes crioulas e o beneficiamento das ervas medicinais”, destaca.