Escrito por: CNTE

Internacional | Mercantilização da educação avança na América Latina

Processo global de privatização da educação pública ameaça o direito dos povos à educação gratuita, completa e de qualidade

Desde 2015, a Internacional da Educação (IE) promove a campanha Resposta Global à Comercialização e Privatização da Educação, que tem como objetivo chamar a atenção sobre os interesses privados na educação pública e como esses grupos estão se tornando atores na política educativa. Na avaliação da IE, a crescente mercantilização
e privatização no setor é a maior ameaça ao direito universal à educação. A pesquisadora do Observatório Latino-americano de Políticas Educativas, da Internacional da Educação para a América Latina (IEAL), Gabriela Bonilla, explica que na América Latina as denúncias desse processo de privatização já vêm ocorrendo bem antes disso,
desde 2008. Ela avalia que há não só um aumento dessa tendência de comércio educativo, mas uma normalização desse movimento, que conta com o reforço da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), e seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

“Os lobbies e as parcerias público-privadas estão se naturalizando, bem como a cooperação internacional, com empréstimos do Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID), com endividamentos que exigem a participação de grupos privados na educação. Então temos um aumento da presença de grupos privados, empresariais ou grandes
Organizações Não-Governamentais e igrejas”, descreve Bonilla.

Impactos na educação
Essa tendência de mercantilização busca uma padronização das disciplinas a serem ensinadas, excluindo conteúdos regionais, história, geografia. “Aqueles, que Paulo Freire
diria que são os que te permitem relacionar com a sua realidade, para agir sobre o contexto”, ironiza Gabriela. “O mais radical sistema de comércio na educação acontece no Peru, onde eles aprovaram um decreto que diz que qualquer grupo fora do país pode administrar escolas públicas peruanas” exemplifica.

A pandemia de Covid-19 acelerou alguns experimentos de educação à distância, que foram adotados, emergencialmente, em diversos países. “O impacto do uso da tecnologia educacional em escala permanece, amplamente não testado, não regulamentado e seus possíveis benefícios para o ensino e aprendizagem, não comprovados”, registra
a presidente da IE, Susan Hopgood, em artigo no site da instituição. “O potencial das tecnologias educacionais para aprimorar o ensino e a aprendizagem é realmente grande – desde que mantenhamos os olhos no objetivo: educação pública gratuita e de qualidade para todos os alunos”, reforça.

Na avaliação de Bonilla, as empresas privadas têm interesse especial em definir conteúdos padronizados para o negócio do ensino à distância. “A Fundação Lemann, por exemplo, tem parceria com a Khan Academy, que já tem digitalizado conteúdos de português e matemática, mas não tem os especializados, como geografia ou história. Porque, para fazer um bom negócio, você tem que fazer algo que precisa ser replicável no mundo todo. E a plataforma Khan Academy tem conteúdo que funciona em muitas línguas – o mesmo conteúdo educativo homogêneo, reproduzido em escala”, sintetiza a pesquisadora.

“O currículo centrado em línguas, matemática, avaliação permanente e no empreendedorismo, também é uma expressão de ausência do estado”, acrescenta Gabriela. “É
uma culpabilização do sistema econômico neoliberal, que diz que o Estado não vai dar direitos para ninguém, inclusive direito à educação e ao trabalho. A realidade é que não temos geração suficiente de trabalhos decentes, com bons salários, para pessoas sem experiência de trabalho, e que estão saindo do ensino médio”, complementa.

Resistência
O Uruguai, embora mais tarde do que outros países, aumentou seu investimento em educação pública, que responde por 84% das matrículas em todos os níveis, de 2,7% do PIB em 2005 para 4,9% do PIB em 2019. “E o fez, apesar do forte ataque à educação pública sendo travado por think tanks de educação pró-mercado, apoiados pela mídia de massa”, explica José Olivera, presidente da Federação Nacional de Professores do Ensino Secundário (FENAPES) do Uruguai.

Em artigo publicado no portal da IE, Olivera conta que a FENAPES tem promovido campanhas para aumentar o orçamento da educação pública, além de denunciar esse processo de mercantilização. A abordagem é feita a partir de atividades culturais, como o carnaval, festivais de música e atividades esportivas, além de impressão e distribuição de materiais visuais destinados a alunos e famílias. “Também organizamos atividades de formação para professores; discussões abertas com trabalhadores de diversos setores, famílias e alunos; uma campanha de comunicação em rádio e televisão; uma intensa campanha nas redes sociais”, complementa.

Na Colômbia, há um modelo de concessão de escolas primárias e secundárias, desde 1990, desenhado pelo Banco Mundial. Por lei, cada estado/departamento, tem que contratar serviços privados (Lei de Participações) para a educação. “As escolas concessionárias, quando tentam se tornar públicas, sofrem com as famílias que têm preconceitos contra o público e que estão se colocando contra a reestatização da educação”, relata Gabriela Bonilla. “A Colômbia é um país onde o preconceito de classe é tão forte, que ninguém quer dizer que estuda na escola pública, para não ser visto como uma pessoa empobrecida/excluída. A classe média ainda quer escola público-privada”, explica.

Para a pesquisadora, o desafio é mostrar, à toda a comunidade, o quanto essa agenda da iniciativa privada pode trazer prejuízos para a formação dos cidadãos. E isso vale também para o Brasil. “Os estudantes vão perceber, claramente, que eles são o objeto dos negócios. É o direito deles ao conhecimento que está em risco”, destaca Bonilla. “A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) não está sozinha, porque temos que mostrar para os outros movimentos sociais e sindicatos, como essa reforma (do Ensino Médio, no caso brasileiro) afeta seus filhos e filhas. A iniciativa privada quer tirar acesso ao conhecimento das classes baixas e médias. A tarefa é comunicar o impacto dessas reformas neoliberais para toda a população”, alerta.

Saiba mais

Relatórios do Banco Mundial que falam sobre a redução do currículo e o foco na linguagem e na matemática, além de promover a participação no setor privado:

» Banco Mundial (2018) Informe; APRENDER para hacer realidad la promesa de la educación. http://bit.ly/3HVRIp6
» Banco Mundial (1990) World Development Report. Poverty. http://bit.ly/3HURa2I
» Empréstimos do Banco Interamericano de Desenvolvimento ao Brasil https://bit.ly/3Y3n9DC
» Produtos digitais da empresa Khan Academy aliada à Fundação Lemman http://bit.ly/3YpszbV
» Documento da OCDE que promove a redução da gratuitidade da educação e também promove o financiamento privado na política educacional. OCDE (2018) El financiamiento de la educación. Conectando recursos y aprendizaje. https://bit.ly/3juE8j6
» Documento das Nações Unidas com a Agenda 2030 que promove parcerias público-privadas e mais dívida para os países. ONU (2015) Declaración de
Incheon https://bit.ly/3juEbeM
» Artigo: Uruguai: a importância de uma campanha global em defesa da educação pública http://bit.ly/3Y8ZmlS
» Artigo: Os professores, não os computadores, são o coração pulsante da educação http://bit.ly/3RDmaYj

Interferência de grupos privados leva à precarização do trabalho docente

Em entrevista à Revista Mátria, Maria Vieira Silva, doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia, aponta que a privatização vem trazendo inúmeros prejuízos aos trabalhadores e trabalhadoras em educação. Entre eles, há a diminuição da contratação de docentes por meio de concurso público e a intensificação de contratos temporários. Veja a entrevista completa a seguir.

Revista Mátria: O que há em comum no processo de mercantilização da educação no Brasil e em outros países da América Latina?
Maria Vieira Silva: Essa questão é bastante importante para lançarmos um olhar de indagação sobre as configurações atuais da educação pública em nosso continente. Não é demais lembrar que os países da América Latina possuem idiossincrasias no âmbito cultural, político, econômico e nos processos de formação do Estado, mas também vários aspectos em comum, especificamente, as difíceis conjunturas marcadas por assimetrias e a incessante luta em prol da consolidação da democracia e de políticas sociais. No que tange à educação, vale lembrar que, com exceção do Chile, todos os países da região contam com um contingente maior de matrículas (em todos os níveis de escolaridade) nas escolas públicas em relação aos estabelecimentos privados. No entanto, em que pese a expressiva presença da esfera pública na oferta educacional, os
processos de privatização têm sido crescente em toda a região e são expressões da deserção do Estado no que se refere ao provimento e à garantia do direito humano à educação, como consequência da ascensão e capilaridade do neoliberalismo no tecido social. Estudos realizados por pesquisadores e movimentos da sociedade civil como a Internacional de la Educación, a Campaña de respuesta global (Global Response) e Observatório Latino-americano de Política Educativa, têm indicado vários aspectos comuns da privatização no território, quais sejam: a assinatura do Acordo Geral de Comércio e Serviços (AGCS), em decorrência da ascensão de governos neoliberais em vários países, aspecto que provocou a expansão acelerada da oferta privada de serviços educacionais em todos os níveis; a participação expressiva da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) na definição de políticas educacionais com recomendações que como a eliminação da gratuidade universal em favor da gratuidade focalizada; centralidade das avaliações estandardizadas [padronizadas] com financiamento baseados em resultados; a influência da Rede Latino-Americana de
Educação (REDUCA) a qual agrega grupos privados e estabelecem alianças com governos de vários países do continente e influenciam em mudanças curriculares e redução de direitos trabalhistas no setor educacional. Assim, convênios entre as redes públicas de ensino e os setores da esfera privada têm se ampliado de forma contundente mediante a participação incisiva de Institutos, Fundações, OSCs, OSCIPs e ONGs. É importante também destacar a participação recorrente de representantes do setor privado em instâncias estratégicas do Poder Executivo, como o Conselho Nacional de Educação, em vários países. Este órgão, de caráter consultivo e deliberativo, assume um
papel importante na tomada de decisões educacionais e de definição dessas políticas. Em vários países têm sido comum a participação de conselheiros que representam os interesses mercantis do empresariado e influenciam em decisões importantes da educação nacional, tal como as configurações curriculares, processos avaliativos, dentre outras.

RM: Quais os principais impactos do avanço da privatização e da mercantilização da educação que o Brasil vem enfrentando nos últimos anos?
MVS: A mercantilização da educação tem ocorrido por meio de ações privatistas de “braços sociais” das empresas nas escolas públicas e tem provocado incidências sobre
múltiplas dimensões da dinâmica escolar, assim, incidem sobre a gestão escolar; a formação de docentes e de gestores; as assessorias pedagógicas; a oferta de tecnologias educacionais; os sistemas apostilados de ensino e os projetos curriculares, dentre outros artefatos pedagógicos. Nossas pesquisas revelam que tais processos ocorrem de forma contígua aos processos de precariedade e intensificação do trabalho dos profissionais que atuam na implementação de programas privatistas, como é o caso do Programa Jovem do Futuro, do Instituto Unibanco, ou Programa Acelera Brasil (Instituto Ayrton Senna), por exemplo. As ações privatistas destes Institutos em alguns estados subnacionais não resultaram em benefícios para a carreira, salários ou gratificações para os profissionais da educação. Por outro lado, constatamos evidências de
intensificação do trabalho dos profissionais da educação que atuam na implementação dos Programas, devido ao volume de atividades requeridas, como é o caso do “professor articulador”, por exemplo. Tal precariedade e intensificação do trabalho docente, por sua vez, podem comprometer as possibilidades de participação nas instâncias decisórias da escola, tais como o trabalho coletivo para a elaboração do projeto político pedagógico e a participação nos diferentes conselhos existentes, transformando o docente em um “ministrador de aulas”. Observamos também, nos estados que desenvolveram de forma orgânica e longeva tais programas, o arrefecimento da contratação de docentes por meio de concurso público e a intensificação de contratos temporários, aspecto que inviabiliza o direito à sindicalização, tornando a autonomia desta fração de classe profissional mais suscetível face à instabilidade, além de enfraquecer o movimento sindical. Os paradoxos e superficialidade das ações empresariais para a melhoria da oferta educacional e das condições de trabalho docente são emblemas do cariz ideológico da responsabilidade social e a prevalência de uma intervenção sistematizada, voltada para a proliferação de políticas e práticas educacionais, tendo como referenciais os paradigmas mercantis.

RM: Mesmo em governos de esquerda, essa ameaça de mercantilização da educação se faz presente. Como os trabalhadores podem barrar esse retrocesso?
MVS: No tempo presente, a maioria dos países do mundo, independentemente de sua vertente político-ideológica, tem assumido - em maior ou menor medida - reformas
educacionais referenciadas na Nova Gestão Pública, com políticas e práticas de caráter mercantil. Se nos anos 1980 esta era uma tendência adotada apenas nos governos
de direita, mediante a justificativa da eficiência econômica e do arrefecimento do poder sindical, nos anos 1990 estas políticas foram adotadas também por partidos de
corte social-democrata e pelas coalizões de esquerda. É premente interromper este processo de mercantilização da educação. No entanto, como este processo é multifacetado
com forte capilaridade, é preciso desenvolver ações também de natureza multiforme: participação ativa e incisiva de representantes da educação pública em Conselhos e Fóruns Municipais, Estaduais e Nacional de Educação; ampliação de pesquisas com perspectiva crítica; fortalecimento do poder sindical para os enfrentamentos necessários no âmbito dos entes federados; ampliação de parcerias entre Universidades Públicas e secretarias municipais, estadual e distrital para a realização de projetos de extensão visando assessorias para a formação continuada de profissionais da educação, reestruturação curricular e elaboração e implementação de projetos políticos pedagógicos; assessorias voltadas para a gestão pedagógica, administrativa e financeira; participação e fortalecimento de entidades civis e confederações de educação em defesa da educação pública.