Escrito por: Professor Doutor Helvécio Lopes
ARTIGO- O mandato de quatro anos, como previsto no ordenamento político brasileiro, para o cargo de vereador, se apresenta, em determinadas circunstâncias, como um interstício temporal excessivo, especialmente para aqueles cuja capacidade de articulação política e legislativa carece de profundidade. Em muitos casos, assiste-se a uma imersão dessas figuras políticas em uma espécie de limbo cronológico, onde, desprovidos de um repertório propositivo robusto e de uma compreensão concreta das necessidades sociais que deveriam atender, os eleitos sucumbem à ociosidade.
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Esse estado de estagnação conduz a uma espécie de fuga para o campo do abstrato, onde as proposições legislativas, em vez de responderem às demandas palpáveis da comunidade, se perdem em devaneios que, quando expostos à esfera pública, beiram o ridículo. O ato de legislar, que deveria ser norteado por uma racionalidade técnica e por uma profunda sensibilidade às necessidades da polis, acaba transformando-se em um teatro de absurdos, onde a criatividade mal direcionada, fruto do tédio ou da incapacidade procedimental, se manifesta em formas exóticas e desconectadas da realidade.
Tais fenômenos não apenas comprometem a credibilidade da instituição política, mas também expõem uma fragilidade do próprio sistema representativo: a falta de mecanismos eficazes de controle e avaliação contínua dos eleitos. Ao longo de quatro anos, a ausência de uma agenda clara e propositiva torna evidente a insuficiência de formação técnica e política de alguns vereadores, que, em sua ânsia por preencher o vazio do tempo, acabam por propor ideias que os afastam daquilo que a sociedade espera de seus representantes.
O caso recente midiatizado na Câmara Municipal de Cuiabá exemplifica o "devaneio legislativo". Ao propor o Projeto de Lei 181/2024, que sugere a obrigatoriedade de exames toxicológicos para todos os servidores públicos da rede municipal de Educação de Cuiabá, é emblemático da situação mencionada, em que a ociosidade e a ausência de ideias coerentes conduzem ao delírio legislativo. Ao alegar, sem qualquer embasamento factual ou científico, que professores estariam fazendo uso de alucinógenos e, como consequência, praticando violência física contra os alunos, o vereador proponente do PL, transcende o campo da simples proposição política, adentrando no terreno do absurdo e do constrangimento público.
Tal proposta revela não apenas a falta de preparo técnico e legislativo de alguns vereadores, mas também uma incompreensão profunda sobre o papel da educação e a seriedade da função pública. A tentativa de vincular o desempenho e a conduta dos professores à utilização de substâncias ilícitas, sem qualquer estudo, levantamento de dados ou consulta a especialistas, desrespeita não só os profissionais da educação, mas a própria inteligência da sociedade que o vereador representa.
A Comissão de Constituição, Justiça e Redação (CCJR) da Câmara Municipal de Cuiabá, ao rejeitar o projeto, fez bem ao apontar as inconsistências legais e a falta de justificativas plausíveis. O exame toxicológico obrigatório, além de violar direitos constitucionais relacionados à intimidade e à dignidade dos servidores, surge como uma medida desproporcional e desnecessária, sobretudo em um contexto em que não há evidências mínimas que sustentem as alegações do representante legislativo.
Esse episódio evidencia uma clara fuga para o irracional, um sintoma daquilo que anteriormente denominamos como "devaneio legislativo." Diante da ausência de um plano de ação concreto, de uma agenda voltada para o real benefício da população, o vereador em questão parece ter optado por uma ideia sensacionalista, que chama a atenção pela bizarrice e pelo exagero. Este tipo de iniciativa não só compromete a legitimidade do cargo público, como também expõe a precariedade da formação política de certos eleitos, que parecem desconhecer as fronteiras entre o razoável e o disparatado.
Ao invés de propor políticas que promovam melhorias estruturais para o sistema educacional, como a valorização dos professores, o fortalecimento de programas pedagógicos ou o investimento em infraestrutura escolar, prefere o vereador lançar mão de um discurso sem lastro na realidade, que coloca os educadores sob suspeição injusta. Nesse sentido, o projeto de lei 181/2024 reflete não apenas a falta de discernimento político, mas também uma tentativa de transformar o debate público em um circo de grotescas afirmações, que em nada contribuem para o bem-estar social.
O fato de o vereador proponente estar em seu quarto mandato, fruto de sucessivas reeleições, levanta uma reflexão sobre os limites da criatividade legislativa e o papel que a renovação política deveria desempenhar. A reeleição contínua, ao invés de ser um reflexo de competência e compromisso, pode, em alguns casos, resultar em um desgaste intelectual e político, onde a ausência de novas ideias e a desconexão com as demandas concretas da população empurram o legislador para o campo da fantasia. No caso, a proposta de exames toxicológicos obrigatórios para professores sugere uma mente que navega por mares fantasiosos numa "terra plana" de suposições infundadas.
Se há uma questão latente nesse cenário, é a possibilidade de aplicar ao próprio vereador os critérios que ele deseja impor a outros servidores públicos. Afinal, se os professores – profissionais cuja função é educar e preparar as futuras gerações – podem ser alvo de suposições absurdas sobre o uso de substâncias ilícitas, o mesmo raciocínio poderia, ironicamente, ser estendido ao legislativo. Se o fundamento da acusação é um delírio sem provas, não seria lógico questionar também a lucidez dos próprios vereadores, especialmente diante de comportamentos questionáveis que frequentemente surgem em plenárias?
Quando vereadores se envolvem em brigas físicas ou verbais durante as sessões plenárias, quando são acusados de assédio ou de corrupção, ou quando defendem seus interesses pessoais em detrimento do bem comum, não seria igualmente justo levantar suspeitas sobre seu estado mental e físico? A lógica circular da proposta pelo vereador poderia muito bem retornar a ele e seus colegas: não estariam, também eles, sob o efeito de substâncias que alteram a percepção, considerando os desatinos que, não raro, permeiam a esfera política? É plausível que, por essa linha de raciocínio, os próprios parlamentares deveriam ser submetidos a exames toxicológicos obrigatórios, visto que o comportamento de alguns eleitos é, por vezes, tão questionável quanto as alegações feitas em relação aos professores.
O cerne desse raciocínio não é propor de fato que todos os legisladores estejam sob influência de drogas, mas expor a falácia e o exagero de um argumento sem base, que não leva em conta a complexidade do trabalho docente e a responsabilidade do ato de legislar. A ideia de que professores estariam "supostamente drogados" enquanto desempenham suas funções é tão vazia quanto a suposição de que vereadores agem sob efeito de substâncias ilícitas quando se envolvem em comportamentos impróprios no exercício do mandato. Diante disso, o Projeto de Lei 181/2024 não apenas desvia a atenção dos reais problemas que afligem a educação pública, como também revela o quão desconectados de suas funções muitos políticos podem estar após longos anos no poder, onde o desgaste das ideias e a falta de inovação produzem iniciativas que beiram o grotesco.
A opção por focar exclusivamente em uma suposta ligação entre o uso de drogas ilícitas e o comportamento dos professores revela uma visão distorcida e seletiva da realidade enfrentada pelos profissionais da educação. Talvez o vereador não tenha tido coragem, ou sequer interesse, de propor uma investigação mais abrangente sobre o real estado de saúde mental dos professores, um tema que certamente traria à tona questões muito mais complexas e desconfortáveis para o setor público.
Se o foco do vereador fosse, de fato, o bem-estar dos docentes e a qualidade do ambiente escolar, ele poderia ter proposto um exame que detectasse o consumo de drogas lícitas, como ansiolíticos, antidepressivos e medicamentos utilizados para o controle de condições como síndrome do pânico, burnout, e estresse crônico. Esse tipo de investigação teria o potencial de revelar o verdadeiro drama por trás do cotidiano do trabalho docente: o adoecimento mental que tem crescido de forma alarmante, não por conta de práticas ilícitas, mas em decorrência do desgaste físico e emocional, fruto de uma profissão desvalorizada, de condições precárias de trabalho e de uma falta de suporte institucional.
Tal proposta, contudo, geraria inevitavelmente uma série de consequências graves para a administração pública, que seria confrontada com dados irrefutáveis sobre o adoecimento generalizado dos profissionais da educação. Um exame toxicológico destinado a detectar drogas lícitas, como calmantes e antidepressivos, certamente mostraria que os “drogados” mencionados de forma tão leviana pelo vereador são, na verdade, vítimas de um sistema que sobrecarrega e negligencia seus servidores. Professores, exaustos tanto física quanto mentalmente, recorrem a medicamentos para lidar com a pressão de um trabalho essencialmente emocional e intelectual, agravado por um sistema educacional que oferece pouco ou nenhum suporte psicoemocional.
Esse tipo de evidência, longe de criminalizar os professores, colocaria sob o foco o verdadeiro problema: o descaso do poder público com a saúde mental dos servidores da educação. E aqui reside a provável razão pela qual o vereador não ousou seguir por esse caminho: ao identificar o uso generalizado de medicamentos psiquiátricos entre os docentes, seria inevitável abrir um debate sobre as condições de trabalho que levam a esse consumo excessivo, evidenciando a falta de políticas públicas voltadas para o bem-estar desses profissionais.
Propor um projeto de lei que revele a dimensão do desgaste psíquico sofrido pelos professores traria à tona um problema muito maior: a responsabilidade do próprio Estado. Isso abriria um precedente para reivindicações trabalhistas, demandas por indenizações e reformas profundas no sistema educacional, o que traria prejuízos financeiros e políticos ao governo. Ao ignorar essa realidade, o vereador opta pela via mais fácil: uma acusação sensacionalista que desvia a atenção do verdadeiro problema e, ao mesmo tempo, protege o Estado das consequências de sua própria negligência.
O estresse, a depressão, a síndrome do pânico e o burnout são condições amplamente reconhecidas como epidêmicas entre os professores, especialmente em contextos de sobrecarga de trabalho, violência escolar e falta de reconhecimento. Tratar essas questões como meros desvios de conduta individual ou, pior ainda, como resultado de consumo de drogas ilícitas, é um ato de profunda irresponsabilidade. Em vez de reconhecer a necessidade de amparo psicológico e de melhores condições de trabalho, o projeto de lei do vereador revela apenas uma tentativa de culpabilizar as vítimas de um sistema falido.
Portanto, a recusa em abordar o consumo de drogas lícitas e os problemas de saúde mental dos professores não é uma simples omissão; é uma estratégia deliberada para evitar que se exponham as verdadeiras falhas do setor público, que negligencia o bem-estar de seus servidores, especialmente aqueles que desempenham uma função tão fundamental como a educação. Ao focar em uma narrativa fantasiosa de professores supostamente drogados por substâncias ilícitas, o vereador escapa de uma discussão que poderia, de fato, gerar mudanças estruturais e responsabilizar o governo pelo adoecimento de seus profissionais.
Helvécio Pereira Lopes – Mestre (PPGE/UFMT – MT) e Doutor (PPGE/UNINOVE – SP)