Escrito por: CNTE
Apesar de estudos comprovarem a relação entre o uso de pesticidas e o câncer, Brasil encerrou 2021 com 562 agrotóxicos liberados, maior número da série histórica
Fátima Cabral acorda todos os dias às seis da manhã e, para começar bem o dia, toma um desjejum composto por um café preto, pão, queijo e, como não pode faltar à mesa de uma mulher agro sustentável, um suco de frutas da época ou, como ela mesmo define, um “suco da sazonalidade”. Na sequência, a família segue para o campo, para as tarefas do dia a dia.
Produtora rural e presidente da Associação dos Produtores Agroecológicos do Alto São Bartolomeu (Aprospera), em Planaltina-DF, Fátima é contrária ao uso de pesticidas e explica que, diferente do que ronda o imaginário popular, a produção de alimentos sem veneno não é difícil. “Produzir orgânico é, sim, trabalhoso, é um caminho longo. Na contramão desse processo está a agricultura que lança mão de uma bomba de veneno para combater as pragas”, compara. “Mas, junto a isso, vem o desmatamento do solo e os problemas de saúde, que podem acometer não só o consumidor, mas principalmente quem é exposto ao veneno ocupacionalmente”, assevera.
Na avaliação de Carolina Panis, doutora em Patologia, que pesquisou a relação entre o uso de agrotóxicos e o câncer, em mulheres do município de Francisco Beltrão, no Paraná, Fátima está no sentido contrário ao que a agroindústria tenta impor aos produtores rurais. “Ao terminar uma palestra, uma senhora me contou que, após o falecimento do esposo, ela decidiu fazer a transição para o orgânico”, conta Carolina. “Disse ela que tomou um susto quando foi ao banco e a instituição afirmou que não poderia financiar se não utilizasse veneno, pois a plantação sem o uso de pesticidas não garantiria que o negócio vingaria”, lembra.
Como o interesse da pesquisadora é o foco em neoplasia mamária, Carolina percebeu que o número de casos era bastante alto comparado ao Paraná. A média de casos em Francisco Beltrão, até 2019, era cerca de 40% maior que a média do estado que, segundo a pesquisadora, já é bastante alta. “Nesse contexto, a gente precisa pensar em um evento chamado fator de risco. E foi aí que nasceu a vontade de estudar os agrotóxicos”, assegura.
O sudoeste do Paraná é uma região essencialmente agrícola, caracterizada pela agricultura familiar, onde as mulheres participam da pulverização de pesticida ao longo do ano inteiro. De acordo com Carolina, em uma conversa com essas mulheres, ela identificou que pelo menos 60% das que estavam com câncer de mama eram expostas de forma ocupacional aos agrotóxicos.
Diferente da pessoa que consome água ou um alimento pulverizado com agrotóxico, a exposição ocupacional é aquela que se dá de forma severa, contínua e é bastante grave. Nas conversas com as pacientes, Carolina Panis observou que elas tinham uma exposição de duas a três vezes por semana em contato direto, sem luva. Elas participavam na diluição dos agrotóxicos e na pulverização. “E o mais grave, elas ajudam na descontaminação de todos os utensílios, da bomba, de todo material que foi utilizado, e da roupa dos maridos e filhos que fazem a aplicação no campo. E essa descontaminação é feita sem luva”, conta.
Ubirani Otero, chefe da Área Técnica Ambiente, Trabalho e Câncer do Instituto Nacional do Câncer (Inca), vinculado ao Ministério da Saúde, lembra que existem evidências de que a exposição a agrotóxicos organoclorados está mais relacionada ao desenvolvimento de câncer de mama. Porém, também existem evidências de que outros grupos de agrotóxicos utilizados nas lavouras, já classificados quanto ao potencial cancerígeno, também podem expor mulheres e estão relacionados a outras localizações primárias de câncer.
Alguns dos agrotóxicos avaliados foram o glifosato, o 2-4D, o DDT, o lindano, a malationa, a diazinona, o tetraclorvinfós e a parationa. Alguns ainda estão em uso no Brasil. “Deve-se considerar também a exposição múltipla a agrotóxicos, uma vez que a mistura de produtos é comum nas lavouras”, acrescenta. Outro fator relevante a ser considerado, segundo Ubirani, é o caso de mulheres grávidas, pois a exposição aos agrotóxicos pode levar ao surgimento de malformação congênita nos fetos.
Quando Fátima Cabral levantou a questão da agricultura sustentável, o principal desafio foi, de acordo com ela, vencer a barreira de o homem estar à frente da produção, de fazer da sua forma e vender como ele acreditava. “A mulher tomou a frente e propôs uma nova forma de agricultura, sem uso do agrotóxico que algumas ainda tinham em suas propriedades”, lembra.
“Não se tinha conhecimento agroecológico, orgânico. Depois, nós viemos também a trilhar o caminho da certificação orgânica e isso exigiu nova adequação aos meios de tecnologia, de aprimoramento, de voltar a estudar, a fazer as capacitações”, afirma.
Fiscalização
Apesar de evidências científicas comprovarem que agrotóxicos são prejudiciais à saúde, o Brasil é um dos países mais permissivos em relação à utilização de venenos pelo agronegócio. O uso das substâncias deve obedecer aos preceitos constantes da Lei Federal nº 7.802/89 e seu Decreto.
Em oposição à ciência e à legislação mundial, que consideram a saúde humana e ambiental acima dos interesses econômicos, o governo do presidente Jair Bolsonaro editou um decreto, em outubro do ano passado, que facilita o processo de registro de novos agrotóxicos e estipula um prazo de até três anos para a análise sobre a segurança dos defensivos agrícolas.
Nesse caminho, entre os anos de 2016 e 2018, o Ministério da Agricultura realizou 2,8 mil fiscalizações na indústria de agroquímicos. Entretanto, em 2021, esse número caiu para 215. O Mapa não disponibilizou detalhes sobre as operações realizadas – como tipo de infrações, produtos apreendidos e localização das empresas autuadas - que, segundo a pasta, podem ser verificados junto aos governos estaduais.
Na contramão da saúde
O Brasil encerrou 2021 com 562 agrotóxicos liberados, maior número da série histórica iniciada em 2000 pelo Ministério da Agricultura. Ainda em dezembro, o total de aprovações já tinha superado o recorde de 2020. O volume foi 14% superior ao de 2020, quando 493 pesticidas foram autorizados. Os registros vêm crescendo ano a ano no país desde 2016.
Além da permissividade, o Brasil é um dos países que possui mais registros de novos agrotóxicos, incluindo alguns banidos no resto do mundo. Para Carolina Panis, não há uma política efetiva de enfrentamento dessa questão. “As pessoas querem comer, mas elas não focam no que tem por trás do alimento. Existe toda uma cadeia de contaminação, de quem está adoecendo e quem está morrendo”, opina.
Nesse contexto, Fátima Cabral acredita que a sociedade e o governo podem contribuir para o fortalecimento da produção de orgânicos dando visibilidade ao trabalho das pessoas do campo. Segundo ela, é preciso que todos saibam o que representa o trabalho dessas pessoas. “O sistema das comunidades que sustentam a agricultura é maravilhoso. Não resolve tudo, mas faz a ponte direta de quem produz para quem consome, sem intermediários. Isso é muito importante porque os intermediários ganham muito em cima de um trabalho árduo, de sol a sol, de chuva a chuva”, avalia.
Carolina lembra que um dos pilares de sustentação do PIB brasileiro é a agricultura para exportação, a que utiliza agrotóxico. “Então eu não vejo uma luz no fim do túnel nesse sentido. Mas falando como profissional de saúde, acredito que um fator importante é a falta de política para proteger essas populações”, opina.
Ela questiona, por exemplo, quem está educando as pessoas para que elas não se exponham ao agrotóxico sem os cuidados necessários. “Nós passamos uma manhã inteira numa vila rural conversando com várias famílias. Percebemos que as mulheres também colocam a roupa dentro da máquina de lavar que, por sua vez, fica toda contaminada. O que acontece? Após essa lavagem, vem a roupa do bebê, as toalhas de banho, as roupas de cama, ou seja, ocorre uma contaminação cruzada de toda a família”, explica.
As pesquisas lideradas pela Patologista mostram ainda que os agrotóxicos são fator determinante para quimio resistência. Em outras palavras, a quimioterapia costuma ser menos eficaz em pacientes que manuseiam e têm contato frequente com esses ativos sem proteção, como as agricultoras familiares do sudoeste do Paraná.
Carolina Panis ressalta que, atualmente, a ciência não consegue determinar se o agrotóxico causa câncer de mama e, segundo ela, esse não é o objetivo, já que para conseguir mostrar esse resultado, a mesma população deveria ser estudada desde o nascimento até cerca de setenta anos. “Isso está bastante longe da nossa realidade. Então, o que fazemos? Estudamos quem é exposto ou não exposto e olhamos para o câncer, para visualizar o comportamento da doença e como vai ser o desfecho dela lá na frente. Então, eu acho que a partir do momento em que eu sei que uma mulher é exposta ocupacionalmente, eu preciso de uma política de acompanhamento”, propõe.
Para Ubirani Otero, um dos problemas a ser mencionado é que, uma vez lançados no solo, os agrotóxicos podem ser transportados em grandes quantidades pelas águas das chuvas, atingindo, principalmente, águas superficiais como rios e lagos. Podem também se infiltrar no solo e atingir as águas subterrâneas, que servem ao consumo humano e de animais.
“Fazem parte desse grupo os organoclorados como aldrien, dieldrin, heptacloro, mirex, toxafeno, DDT, lindano, endosulfan etc.”, explica Ubirani. “São proibidos no Brasil, mas seus metabólitos ainda podem ser encontrados em tecidos e leite humanos e de animais, uma vez que têm afinidade por tecidos gordurosos”, explica.
Já de acordo com Fátima Cabral, a prática sustentável, agroecológica, agroflorestal e orgânica é imprescindível para a saúde da mulher, porque vem ao encontro da essência de cuidado e acolhimento. Sair de uma produção convencional é, para ela, retomar o fluxo natural da vida. “A gente vive um momento em que não tem mais para onde correr e destruir. O caminho agora é de restaurar, de cuidar, de tomar consciência do valor e da importância da terra. É preciso que essa terra esteja nutrida e saudável”, assegura.
Caminho para o registro
Para obter o registro, as empresas interessadas devem submeter o produto a três órgãos reguladores: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Em um primeiro momento, a Anvisa avalia e classifica os riscos do produto à saúde humana. Em seguida, o Ibama avalia o risco do produto para o meio ambiente e o divide em classes de acordo com o perigo que representa. Por fim, o Mapa verifica a eficácia do produto. Ele analisa se a composição é capaz de matar as pragas e as doenças das plantações. Após o aval da Anvisa e do Ibama, é Ministério que formaliza o registro do produto.