Escrito por: CNTE
Na Serra do Espinhaço, as comunidades tradicionais que preservam saberes singulares enfrentam obstáculos para manter suas culturas
Elas vivem da terra ao mesmo tempo em que mantém a terra viva, numa troca saudável com a natureza, na qual todos ganham. Elas se dizem apanhadoras de flores, mas, na verdade, representam muito mais que isso para o ecossistema da Serra do Espinhaço, em Diamantina (MG), onde moram, de onde tiram seu sustento e onde desempenham um papel fundamental de verdadeiras guardiãs da terra, da água e do ar ao manter, tanto as flores que apanham (ou “panham”, como costumam dizer) quanto a biodiversidade da região, Sempre-Vivas.
A panha da flor é uma conexão muito direta com a natureza, a natureza traz alegria, é a psicóloga”, explica Erci Alves, liderança do Quilombo de Raíz, na comunidade Presidente Kubitschek, em Diamantina. “A pessoa sai para colher flores, pode sair triste, volta alegre. Na panha de flores você ouve histórias tristes, alegres, olha uma coisa na natureza e admira. Não é só a panha da flor. Somos guardiões das terras, das águas e da biodiversidade. De tudo que você pensar, a serra é a nossa vida, é a nossa casa”, comenta a líder definindo sua relação com a coleta das flores Sempre-Vivas, uma das atividades mais antigas da comunidade.
Erci, que também trabalha com plantas medicinais, conta que aprendeu esse ofício desde criança e que é uma tradição passada de pai para filho, reunindo a família toda. Essa atividade poderia garantir renda o ano todo, porque em cada época tem uma espécie para colher - e são 90 espécies de Sempre-Vivas - mas ela diz que está ficando mais difícil em função da perda de territórios para monoculturas de eucalipto e braquiárias, entre outras limitações. “Os espaços ficam restritos por causa dos fazendeiros, que proíbem as entradas, devido à questão da monocultura. A gente dependia do manejo do fogo para o sustento dessas flores e hoje a gente perdeu isso. Ainda é a renda da comunidade, mas devido a essa perda de território a gente definiu fazer artesanato para garantir”, explica.
A apanhadora de flores, Maria de Fátima Alves, conhecida como Tatinha, também relata dificuldades com as ameaças causadas pelas mineradoras e o agronegócio, além
das restrições impostas pelas Unidades de Proteção Integral. Tatinha faz parte da coordenação da Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (Codecex) e vive em uma comunidade tradicional na região, que abriga nascentes de bacias importantes como do rio Jequitinhonha e do São Francisco, também em Minas Gerais.
Além das questões territoriais, Tatinha inclui ainda o baixo preço das flores e a falta de políticas públicas como desafios. “O mais importante é buscar meios de garantir a permanência de quem quer ficar. Os jovens demandam melhoria de recursos de comunicação, internet, acesso à educação de qualidade”, aponta.
Luta pela terra
Na opinião de Alessandra Jacobovski, assessora jurídica da Terra de Direitos, organização que acompanha os casos de regularização fundiária das comunidades de apanhadores de flores da Serra do Espinhaço, já existe um consenso sobre os direitos dessas comunidades aos territórios. “Elas foram as primeiras a receber, no
Brasil, o selo de reconhecimento de Sistemas Importantes do Patrimônio Agrícola Mundial (Sipam), concedido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), em 2020. E isso resultou num plano de conservação que envolve diversos entes governamentais e não governamentais”, ressalta Alessandra. Neste plano
estão previstas diversas medidas que visam a preservação das comunidades - como proteção e regularização de territórios, acesso a políticas públicas e proteção da agro biodiversidade.
No entanto, o plano vem esbarrando na morosidade dos órgãos públicos com a titulação e regularização desses territórios. “Os pedidos de titulação já foram apresentados, por essas comunidades, há anos. A gente tem caso de 7 anos, e os processos de titulação não andam. A ponto de haver a judicialização, para provocar o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], a titular esses territórios”, pontua Alessandra.
A assessora da Terra de Direitos afirma que sempre houve demora, porém esse fator foi muito agravado nos últimos quatro anos, com o governo Bolsonaro. “No caso das comunidades tradicionais quilombolas, também existe regularização e reconhecimento desses territórios. No caso dos não-quilombolas, a morosidade vem de um órgão estadual responsável. Ambos alegam deficiência de recursos e de pessoal”, detalha. Para Alessandra, com o novo governo, abre-se espaço para a efetivação da política agrária e fundiária, com possibilidade de aporte de recursos, o que deixa a comunidade e a Codecex esperançosas de que esses processos de regularização, agora, passem a caminhar. “A garantia da terra e do território é o principal ponto de acesso para qualquer política pública de saúde, educação, produção agrícola, à realização de atividades econômicas e, sobretudo, à proteção das comunidades tradicionais, da cultura, da biodiversidade do local”, reforça
Importância das Comunidades Tradicionais
Segundo a pesquisadora do Laboratório de Geografia Agrária da Universidade de São Paulo (USP), Fernanda Monteiro, esse modo de vida dos chamados povos e comunidades tradicionais tem a ver com a forma com que eles se organizam e como manejam a natureza para construir a vida, para viabilizar a vivência material e simbólica. No caso das comunidades da Serra do Espinhaço, cada núcleo familiar tem a sua terra – geralmente é a casa e o quintal – e tem as terras de uso comum daquelas famílias, que são parte daquela comunidade. “Na parte familiar, há as roças, os cultivos e criação de pequenos animais”, descreve Fernanda. “E na área de uso comum é a criação de gado solto. Cada família tem o seu, nas áreas de gramas e pastagens nativas, nas terras mais altas”, completa.
A pesquisadora chama a atenção para o que chama de riqueza de saberes. “Tem sempre um detalhe sofisticado de observação, de conhecimento humano, que uma família é capaz de fazer. Elas cultivam mais de 90 espécies de plantas e coletam mais de 400 espécies. São comunidades que, além de terem ritos e tradições, têm um cabedal de conhecimento humano e ecológico refinadíssimo, e uma capacidade de fazer a vida a partir desse conhecimento, dessa lógica de manejo, desse recurso natural, seja ele qual for: água, mata, flores.
Eles têm muito a ensinar”, detalha. “Apanhar flor é um ato muito antigo na humanidade e muito simbólico”, prossegue Fernanda. “A gente precisa ter a dimensão de quão importante essas comunidades são para a sociedade mais ampla. Não só pelos que elas conservam lá, mas pelo que elas são e pelo que elas fazem com que sejamos; pelo que elas contribuem para o que a gente é, uma referência para a nossa cultura e identidade. É muito importante olhar dessa forma para valorizar, respeitar e, sobretudo, se
reconectar. Porque essa é a nossa história também, uma grande beleza e possibilidade de avanço como sociedade”, conclui.
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