Escrito por: CNTE
A eleição de um governo que se posiciona como liberal na economia gerou expectativas e apreensões também entre os principais agentes que trabalham com o gerenciamento da educação básica no país. Alguns, alinhados com declarações do presidente Jair Bolsonaro e do ministro da Economia, Paulo Guedes, acreditam que a educação precisa de um considerável estímulo do setor privad...
A eleição de um governo que se posiciona como liberal na economia gerou expectativas e apreensões também entre os principais agentes que trabalham com o gerenciamento da educação básica no país. Alguns, alinhados com declarações do presidente Jair Bolsonaro e do ministro da Economia, Paulo Guedes, acreditam que a educação precisa de um considerável estímulo do setor privado para promover novos investimentos no setor, como o fortalecimento do ensino a distância. Outros se mostram preocupados com eventuais consequências negativas dessa provável abertura.
O receio vem da observação sobre o movimento realizado recentemente no ensino superior. De acordo com o último Censo da Educação, 21% dos alunos do ensino superior estão matriculados num curso a distância. Em 2017, o setor avançou 17,5%, o maior salto desde 2008.
Essa curva de expansão nas universidades privadas começou em 1997, quando um decreto do então presidente Fernando Henrique Cardoso permitiu que as instituições de ensino superior tivessem oficialmente fins lucrativos. Entre 1998 e 2004, as matrículas na rede privada aumentaram 126%. Na rede pública, 46%.
No ensino básico também há uma tendência do aumento de matrículas e dependências das escolas particulares, mas de forma tímida. Nos últimos nove anos, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), houve crescimento de 18,7% no número de matrículas nas redes privadas, enquanto que as dependências particulares cresceram 11,9%. Na escola pública, o movimento foi o inverso: uma queda de 9% das matrículas, mesmo com aumento de 5,6% nas dependências.
Para o professor e presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Heleno Araújo Filho, a “mercantilização” da educação básica é um processo antigo no Brasil, mas o contexto político e econômico que vivemos pode indicar uma tendência de aceleração.
“Estamos realizando seminários com o objetivo de mostrar ao conjunto dos trabalhadores da área de educação como acontece o processo de privatização e mercantilização no dia a dia da escola e da administração escolar. Tem gente ganhando muito dinheiro com a educação a distância, e estão de olho na educação básica. Um estudo recente mostrou como operam as fundações e os institutos ligados às empresas privadas e aos bancos na área da educação”, ressalta o presidente da CNTE.
O estudo citado pelo professor foi feito pela Internacional da Educação para América Latina (IEAL). De acordo com a pesquisa, publicada em 2018, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) são os maiores credores da educação no mundo e na América Latina. No caso do Brasil, teriam destinado fundos a grupos privados para desenvolver materiais didáticos, modelos pedagógicos, projetar o currículo para a formação de estudantes do ensino médio e instalar seus próprios centros educacionais.
Grandes
Com o maior número de municípios no país, Minas Gerais teve mais de 4,5 milhões de alunos matriculados na educação básica em 2018, um dos maiores índices no Brasil, segundo o último censo. De acordo com o Sindicato das Escolas Particulares de Minas Gerais (Sinep/MG), apesar de o atual governo já ter sinalizado uma política econômica mais liberal e privatista, ainda não há elementos concretos que possam mostrar essa chegada à educação.
“Pode-se falar, por outro lado, em mercantilização. É uma tendência mundial que empresas privadas invistam nas universidades, inclusive públicas, com o objetivo de formar mão de obra qualificada para o mercado de trabalho. No entanto, sou contra a educação a distância para a educação básica. A socialização de crianças e adolescentes é necessária para o desenvolvimento humano. Nada substitui o convívio dentro da escola”, ressalta a professora Zuleica Reis Ávila, presidente do Sinep/MG.
Embora as políticas de ensino a distância no ensino básico ainda surjam apenas como hipóteses ao modelo educacional, grandes empresas do setor da educação já se movimentaram para alcançar uma determinada fatia de mercado.
Antes mesmo da eleição do novo governo, a gigante Kroton anunciou, em abril de 2018, a compra da Somos Educação, focada em ensino básico, por R$ 4,6 bilhões. O negócio com a Somos (antiga Abril Educação e dona de marcas como Anglo, Editora Saraiva e Red Ballon) se deu pela Saber, holding da Kroton. Procurada pela reportagem, a Kroton não quis se manifestar sobre seus planos atuais que miram a educação básica. No entanto, em seu site, revela que já controla a gestão de 54 escolas, sendo 47 próprias e 7 por contrato. Somadas as unidades da Red Balloon, pela qual a Kroton tem responsabilidade como gestora, são mais de 62 mil alunos orientados pelo grupo.
O atual ministro da Economia, Paulo Guedes, também possui negócios no setor da educação. Sem qualquer prova de que tenha arrecadado dinheiro de forma ilícita, ele é investigado pelo Ministério Público Federal (MPF) por captar cerca de R$ 1 bilhão de fundos de pensão. O inquérito, que investiga se houve gestão fraudulenta envolvendo Guedes e os responsáveis pelos fundos, diz que após receber os recursos dos fundos de pensão, o Fundo BR Educacional investiu o dinheiro de seus cotistas em apenas uma empresa, a HSM Educacional S/A, também controlada por Paulo Guedes.
Em abril deste ano, foi a vez do Tribunal de Contas da União (TCU) abrir processo para apurar as denúncias do MPF em relação a Guedes. Agora, o tribunal avaliará possíveis perdas causadas às estatais e aos fundos de pensão nas operações.
Sistema de vouchers
Para alguns especialistas, as políticas na primeira infância se assemelham ao sistema de vouchers praticado em países como a Suécia, o Chile e os Estados Unidos. Os vouchers já foram defendidos anteriormente pela cúpula do governo Bolsonaro.
A teoria da escolha da escola pelos pais (subsidiada por vouchers) nasceu nos Estados Unidos para burlar uma decisão da Corte Suprema, ainda na década de 50, que determinava a dessegregação imediata das escolas americanas. Para manter a segregação, os pais brancos argumentaram que era direito deles escolher a escola dos filhos. Com isso, pretendiam que os pais de brancos pudessem continuar a matricular seus filhos em escolas de brancos, mantendo a segregação dos negros.
“Esta marca segregacionista é vista nas experiências que se seguiram tanto no Chile como nos Estados Unidos. Está claro, hoje, que não é o pai que escolhe a escola e sim a escola que escolhe o pai – a partir de quanto dinheiro ele carrega no bolso. Para se ter uma escola terceirizada ou particular de boa qualidade, é necessário que o pai complemente o valor do voucher com seus próprios recursos. Quem não tem recursos para agregar aos vouchers fica com as piores escolas. Os resultados são a ampliação da segregação escolar e racial e do ponto de vista acadêmico os estudos apontam que não há ganhos que compensem os efeitos colaterais criados”, explica o professor aposentado da Faculdade de Educação da Unicamp Luiz Carlos de Freitas.
Ainda de acordo com o professor, a política dos vouchers é uma caracterização de governos neoliberais, já que o seu maior expoente foi o teórico Milton Friedman.
O docente explica que ele foi o proponente dos vouchers em um artigo de 1955, onde argumentava que o Estado deveria afastar-se da administração das escolas, ficando apenas com o papel de financiador. “Os neoliberais acreditam que a única forma de promover a qualidade da educação é inserir as escolas, professores e estudantes em um mercado concorrencial, onde todos se comportem sob a lógica de uma organização empresarial”, comenta Freitas.
Dimensões da privatização
Professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Theresa Maria de Freitas Adrião coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional (GREPPE), uma agremiação interinstitucional relacionada à gestão e ao financiamento da educação básica. Ela diz que nos estudos produzidos pelo grupo são consideradas três dimensões que caracterizam a privatização na educação brasileira: oferta educacional, gestão da educação e currículo.
“Por privatização da oferta educacional, entendeu-se as formas de subsídio público à oferta privada para acesso à educação por meio de convênios, contratos e bolsas de estudo em instituições privadas. No que se refere à privatização da gestão educacional, tratou-se de abordar processos para contratação de assessorias e transferências da gestão escolar para instituições privadas lucrativas. No caso do currículo, a compra de desenhos curriculares ou seu desenvolvimento pelo setor privado para implantação em sistemas públicos e a adoção dos sistemas privados de ensino por redes públicas”, relata a pesquisadora.
No Legislativo
Fora do âmbito do Executivo, há propostas em pauta no Legislativo para flexibilizar o financiamento da educação. O atual presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, Pedro Cunha Lima (PSDB/PB), defende um fundo para custear a criação e manutenção de creches públicas e privadas no país. Segundo ele, esse dinheiro viria a partir de uma renúncia fiscal da própria arrecadação do imposto de renda dos contribuintes.
“Eu não me preocupo se a creche é privada ou pública. O que me preocupa é que a criança esteja sendo bem tratada, bem cuidada, estimulada, aprendendo. Precisamos superar essa disputa de viés ideológico, para fazer uma disputa de resultado, de eficiência”, comenta o deputado.
Por enquanto, a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado já aprovou o PLS 466/2018, do senador José Serra (PSDB/SP), que prevê que famílias de baixa renda que não conseguirem matricular suas crianças em creches, pré-escolas públicas ou conveniadas possam passar a receber um auxílio financeiro para inscrevê-las em instituições privadas.
(Revista Educação, Frederico Guimarães , 7/10/2019)