Escrito por: CNTE
Proposta tira direitos principalmente de servidores públicos da educação e estimula a militarização das escolas públicas
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Depois da Emenda Constitucional 95 (EC 95, o Teto de Gastos), das reformas trabalhista e previdenciária, o novo avanço do governo federal contra os direitos garantidos na Constituição de 1988 é a reforma administrativa. A proposta de emenda à Constituição é uma das prioridades do governo em 2021 e quer alterar as regras do funcionalismo público. Entre as mudanças estão a retirada da estabilidade dos servidores, de benefícios como a licença-prêmio e maior flexibilidade quanto a terceirizações e parcerias com o setor privado.
Todas as fontes ouvidas pela Iniciativa De Olho Nos Planos enfatizaram que a PEC 32 é, na prática, um desmonte do Estado. Sem se basear em evidências, é um mero ataque a trabalhadoras e trabalhadores que terá como resultado a precarização do serviço público, afetando mais quem mais depende dele (os usuários e servidoras e servidores com menores salários). Nota técnica elaborada pelo consultor legislativo Vinícius Leopoldino do Amaral sobre os impactos fiscais da proposta na verdade conclui que “a PEC 32/2020 apresenta diversos efeitos com impactos fiscais adversos, tais como aumento da corrupção, facilitação da captura do Estado por agentes privados e redução da eficiência do setor público em virtude da desestruturação das organizações”. O autor do estudo estima que a reforma administrativa, como colocada nesse momento, deve piorar a situação fiscal da União, seja pelo aumento das despesas, pela redução das receitas ou pela criação de até 1 milhão de cargos de confiança.
Áreas como saúde e educação devem ser profundamente afetadas pela reforma em diversas frentes: precarização de contratos de trabalho, maior influência do setor privado e consequentemente a diminuição da liberdade de cátedra.
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TRAMITAÇÃO
Enviada pelo governo para a Câmara ainda em 2020, a PEC da reforma administrativa (PEC 32/2020) já passou pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que avalia se o projeto é constitucional. Apesar de ter sofrido alterações em três pontos, foi aprovada e seguiu para a tramitação. Em junho, a Câmara instalou a comissão especial que vai discutir o conteúdo da proposta. O deputado Fernando Monteiro (PP-PE) foi eleito presidente e indicou o deputado Arthur Maia (DEM-BA) como relator. Maia, em anos anteriores, votou a favor das reformas previdenciária e trabalhista.
A previsão é que, nesta comissão, sejam realizadas 14 audiências públicas – entre elas, uma com Paulo Guedes – e o relator apresente seu parecer em agosto. Aí a reforma administrativa vai para apreciação do Congresso. Por ser uma proposta que altera a Constituição, precisa ser votada em dois turnos nos plenários da Câmara e do Senado.
A PROPOSTA
A reforma administrativa proposta pelo governo altera as regras para futuros servidores públicos dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário da União, estados e municípios. Em caso de aprovação, atuais servidores não são atingidos pelas mudanças (mas podem o ser indiretamente, como explicado na próxima seção). Também estão isentos os militares, parlamentares, magistrados (juízes, desembargadores, ministros dos tribunais superiores), promotores e procuradores.
Entre seus pontos estão o aumento do estágio probatório, o fim da estabilidade dos servidores, de licença-prêmio, e do regime jurídico único da União. Também aumenta os cargos por indicação (de confiança) e os convênios com a iniciativa privada. O governo argumenta que a reforma visa aumentar a eficiência do Estado e que vai cortar um custo na casa dos 300 milhões de reais em uma década. No entanto, falta embasamento para essas afirmações.
OS PROBLEMAS
Conversamos sobre a proposta da reforma administrativa com Pedro Pontual, presidente da Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ANESP), Roseli Faria, vice-presidente da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Planejamento e Orçamento (Assecor) e Fátima Silva, secretária-geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE). Eles apontaram diferentes problemas da PEC e convergiram ao afirmar que a atual proposta, originada do governo Bolsonaro, é intrinsecamente problemática. Ela parte de pressupostos preconceituosos ou, para dizer o mínimo, sem evidências suficientes. Portanto, deve ser barrada, já que mudanças durante a tramitação não alterariam seu teor fundamental.
Pedro Pontual reforça que a reforma não ouviu especialistas ou usuários/as dos serviços para embasar suas proposições e que não há estudos atestando que o problema do serviço público são os servidores. Também não há avaliação dos impactos dos dispositivos propostos. “É uma PEC orientada pelo preconceito contra os servidores, que parte do princípio que o serviço público é ruim e caro e que por isso é preciso diminuir os gastos na folha de pagamento. Mas isso não leva em conta que Estado e orçamento existem para entregar um serviço e que não há meios do Estado ofertar saúde e educação sem o profissional dessas áreas”.
Essa discussão é importante porque o governo, embora argumente “melhorar a eficiência” do funcionalismo público, não está discutindo, de fato, como melhorá-la. A discussão não se dá em termos de prestar o mesmo serviço com menos pessoas ou de aumentar o serviço prestado mantendo o número de servidores. A reforma administrativa fala apenas em reduzir pessoal. “Se a reforma estivesse de fato debatendo eficiência, estaria discutindo os resultados e não apenas os gastos”, resume o presidente da ANESP.
Vale lembrar que o Brasil tem um sistema de saúde universal e gratuito, além de uma grande arquitetura de financiamento da educação. Sendo um dos maiores e mais populosos países do mundo, os gastos absolutos tendem a ser mesmo mais altos. Isso não quer dizer que o valor investido por cidadã/o seja alto. Por exemplo, em 2020 o governo reduziu o valor mínimo por aluno do Fundeb para R$3349,56, cerca de 279 reais mensais por estudante, ou de 16 reais por dia letivo. A União repassa aos estados e municípios, via Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), no máximo R$1,07 per capita para alimentação escolar (valor que chega a um mínimo R$0,32 na Educação de Jovens e Adultos). “No Brasil, é comum que o docente compre material didático com o próprio salário. Isso sim é uma realidade. E que não se resolve ao tirar a estabilidade do servidor ou diminuindo seu salário”, diz Pedro.
A estabilidade é um mecanismo conquistado na redemocratização, que garante que as trabalhadoras e trabalhadores não serão perseguidos por suas visões, opiniões ou atividades políticas. Como lembra Roseli Faria, da Assecor, esse mecanismo está presente desde o início do século XX nos Estados Unidos, não sendo uma exclusividade brasileira. E também cumpre a função de profissionalizar o serviço público. Mesmo com a estabilidade, garante Roseli, ainda há mecanismos para punir o mau servidor.
Pedro Pontual, presidente da ANESP, concorda. Ele enfatiza que o governo Bolsonaro não fez estudos investigando quais são os males da estabilidade antes de propor acabar com ela. “Existe apenas uma narrativa de que a estabilidade gera preguiça. É uma gestão orientada pelo preconceito”, diz. E, sem estabilidade, servidoras e servidores podem se sentir acuados em discordar de seus chefes, de assinar estudos ou pareceres técnicos, além de haver menos incentivos para especialização e aprimoramento profissional – o que pode ser piorado pela retirada de benefícios como a licença-prêmio. Em contrapartida, a nota técnica do consultor legislativo Vinícius Leopoldino do Amaral calculou que os cargos ocupados por pessoas sem vínculo – o que favorece a corrupção – podem aumentar em até 29% com a aprovação da reforma.
Além do preconceito embutido nas propostas, muitos mecanismos propostos pela Reforma já estão abarcados na Constituição. Por exemplo, a avaliação dos servidores públicos. Servidores federais não conseguem ter aumento de salário ou progressão de cargo sem a avaliação. “Se é a melhor metodologia ou se a avaliação é dura o suficiente é outra discussão. Mas nada disso precisa de uma PEC, não precisa alterar a Constituição. Se quer reformular, regulamentemos o que já está previsto, coletemos as melhores práticas”, diz Roseli Faria. Por isso, na visão da vice-presidente da Assecor, o atual projeto de reforma administrativa deve levar a um efeito contrário ao anunciado, aumentando o aparelhamento, os desvios de recursos e a corrupção, além da terceirização e mercantilização de serviços essenciais como a saúde e a educação. Como consequência de serviços essenciais mercantilizados e terceirizados, teríamos relações de trabalho mais precarizadas e uma piora no serviço prestado à população.
Da mesma maneira, os desestímulos aos servidores públicos podem acarretar em uma “seleção adversa”. Isto é, ficam no serviço público apenas quem não conseguiu oportunidades melhores. E isso afeta inclusive os atuais servidores, que tecnicamente não são atingidos pela reforma administrativa. Como explicou Pedro Pontual, as prioridades para licenças, especializações e similares tendem a se direcionar para trabalhadores cujos contratos já estão no novo modelo. Nas palavras de Roseli Faria: “A mercantilização pode vir pela ampliação de contratos com a iniciativa privada, que, como contrapartida, precisa da precarização do trabalho no serviço público, da desprofissionalização das carreiras”. Seriam mecanismos de desprofissionalização não apenas o fim da estabilidade, mas também o aumento de servidores temporários com a expansão do período de estágio probatório, por exemplo.
IMPACTOS NA EDUCAÇÃO E ENFRENTAMENTO
Os impactos na educação podem vir de diversas maneiras: diminuição ou extinção de concursos públicos, substituições de professoras/es e funcionárias/os por cooperativas e/ou empresas terceirizadas em um contexto de já intensa precarização da área, com porcentagem importante das trabalhadoras e trabalhadores atuando sob contratos temporários. Vale lembrar que 80% das docentes da educação básica brasileira são mulheres que seriam ainda mais prejudicadas com a precarização destes contratos.
“Além disso, há consequências para os fundos de pensões e previdências do funcionalismo público. Sem concurso e com menos funcionários, como pagar a previdência do próprio quadro atual? Os mais penalizados serão os trabalhadores com os menores salários, os que mais prestam serviços à população”, alerta Fátima Silva, secretária-geral da CNTE.
Salomão Ximenes, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), vê a Educação impactada em diversas frentes em caso de aprovação da PEC da Reforma Administrativa. Além de abrir um potencial para o setor privado lucrar com a educação pública, a proposta também pode estimular ainda mais a militarização das escolas. Salomão analisa que o parágrafo 4 do Artigo 142, ao autorizar militares da ativa a acumular o cargo militar com outro cargo ou emprego de profissional da saúde ou do magistério, pode disseminar a presença militar de forma sem precedentes nas escolas. Isso permitiria a militares da ativa assumir cargos de docência ou gestão nas escolas públicas comuns, sem necessidade de afastamento ou desligamento do cargo militar de origem.
Ainda, segundo sua análise, a fragmentação do regime jurídico entre cargos típicos de Estado e cargos com vínculo por prazo indeterminado (sem estabilidade) pode afetar a liberdade de cátedra dos servidores públicos da educação. “A estabilidade é elemento central da realização do direito à educação de qualidade. É uma proteção não ao servidor estável, que hoje já pode ser demitido por desvios funcionais ou mal desempenho reiterado, mas ao serviço público de educação. E, em termos quantitativos, são os servidores da educação o maior grupo a ser potencialmente impactado por esta mudança de regime e perda de estabilidade”, explica.
Como ressalta Fátima Silva, nem mesmo as emendas podem alterar a proposta substancialmente. Apresentada pelo governo Bolsonaro, o enfraquecimento do Estado é o único horizonte. “Não é uma reforma administrativa, é passar os serviços públicos para a iniciativa privada”, diz. O único jeito de barrar o enorme retrocesso é lutando para que a PEC não seja aprovada e pressionando cada parlamentar para tentar virar o jogo.
(De olho nos Planos, texto: Nana Soares, com edição de Cláudia Bandeira, 5/07/2021)