Escrito por: CNTE
O presidente da CNTE, Heleno Araújo, vê na aprovação da portaria 667/22 o risco de aumentar a evasão escolar
O Regime de Progressão Continuada (RPC) voltou à discussão com a portaria 667/22 do governo federal, que indicou o fim do ensino por ciclos como um tema prioritário para discussão no Congresso Nacional. “A escolarização no Brasil era subdividida em unidades pedagógicas de ensino que duravam um ano letivo: a chamada “série”. Estabeleceu-se uma progressão: o aluno passava de uma série menor a outra maior, com tal passagem condicionada a uma aprovação”, contextualiza o professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) Ocimar Munhoz Alavarse.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996) introduziu a ideia de ciclos, ou seja, quando uma unidade pedagógica dura mais de um ano letivo. “No ensino fundamental, por exemplo, o conjunto de conteúdos e experiências que se espera proporcionar aos estudantes acontece em três ciclos de três séries cada”, explica. “Assim, o RPC não condiciona o desempenho acadêmico à passagem de um ano letivo para outro. Porém, a reprovação ainda pode acontecer no final de cada ciclo”, completa o professor.
O regime não é consenso entre educadores. “A ideia de organizar a unidade escolar em um ano letivo, ou seja, que o pré-requisito para passar para outra série seja dominar a anterior, faz sentido. Entretanto, esbarra nas desigualdades sociais”, explica.
Seleção social
A primeira experiência de progressão continuada no Brasil ocorreu na década de 1920 na capital de São Paulo, tocada pelo professor Sampaio Dória.“Ele se espantou que nem todas as crianças paulistas entravam na escola. Dessas, quase metade reprovava já no primeiro ano e as reprovações continuavam nos seguintes. Ao final, poucos concluíam o ensino primário, algo que não acontecia em outros países”, conta Alavarse.
Sampaio compreendeu que a escola operava com uma seletividade acentuada, que a reprovação não significava aprendizagem e os professores, muitas vezes, eram operadores desse processo de seleção. “Ou seja, a escola que deveria disseminar conhecimentos virava uma máquina de seleção social impregnada de valores liberais, defendendo sucesso para poucos. Apesar da aparência de igualdade e oportunidade, seu conjunto de práticas hierarquizava as crianças”, explica Alavarse.
Outra pesquisadora que observou o fenômeno das taxas de reprovação no Brasil foi Emilia Ferreiro. “Dentro da alfabetização, ela concluiu que os professores usam uma ideia de ‘tudo ou nada’ para reprovar. O aluno que não dominava tudo, reprovava, sem meio termo”, informa o professor. “O problema é que, ao adentrar na série seguinte, os conhecimentos dessa criança eram desconsiderados, como se ela começasse do zero. E quando se é muito pequeno, um ano de diferença em relação à turma é muito. Tudo isso desestimula”, conclui.
Outro problema é que a hierarquização dos estudantes é realizada de forma subjetiva. “Depende do grupo em que o aluno se encontra. Em uma classe em que todos sabem muito, ele pode saber bastante e ficar abaixo da média”, pondera Alavarse. Ao final, o processo incentiva evasão escolar. “Quando o aluno reprova ano a ano, chega uma hora que fica desestimulado, envergonha-se de ser o mais velho da turma até chegar em uma idade em que é empurrado para o mercado de trabalho”, analisa o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) Heleno Araújo.
Mal uso da avaliação
Para Alavarse, um dos problemas para a RPC não funcionar é uma avaliação não diagnóstica, mais focada em “aprovar” ou “reprovar”. “A avaliação deve estar alinhada ao que de fato foi ensinado, identificar o que a criança aprendeu e apontar para o que precisa ser trabalhado para superar dificuldades que permaneceram”, sintetiza.
“Uma criança que chega ao final de um ano letivo sem condições de passar estava assim desde o começo do ano. O que a escola, enquanto instituição, fez para identificar e impedir isso?”, questiona.
Outra problemática é que a avaliação por desempenho é relativa. Em uma pesquisa, Alavarse comparou as notas que os alunos tiravam na Prova São Paulo com as dadas pelos professores da sua escola. “Em geral, há concordância, mas houve disparidades. Isso porque fatores como disciplina, esforço e participação são valorizados, mas não são efetivamente um aprendizado. Assim, pode-se reprovar quem não deveria e vice-versa”.
Para Araújo, o RPC só funcionará quando o estado garantir estruturas à aprendizagem “A partir da avaliação diagnostica, os professores do ciclo anterior precisam orientar os do posterior sobre onde o aluno não avançou. É um trabalho de equipe impossível de realizar em redes repletas de professores temporários, sobrecarregados, mal remunerados e trabalhando sem estrutura, como materiais didático e laboratórios”, denuncia.
Para o sociólogo e ex-secretário do Ministério da Educação (MEC, 2012-2013) César Callegari a progressão continuada gerou uma “cultura de descompromisso” na escola. “A avaliação permanente do desenvolvimento da aprendizagem não deve ter como objetivo principal aprovar ou reprovar. Deve estar articulada com medidas de apoio pedagógico complementar para as crianças que dela necessitem”, argumenta.
“O debate não é reprovação, mas se o aluno está aprendendo ou não. A criança não tem a obrigação de chegar motivada. Fazer ela se interessar pelo conteúdo e proporcionar uma aprendizagem significativa é obrigação dos adultos e somos pagos pelo estado para isso”, enfatiza Alavarse.
Competitividade e meritocracia
Araújo vê na aprovação da portaria 667/22 o risco de aumentar a evasão escolar. Para ele, o texto ainda naturaliza meritocracia e competitividade, desconsiderando as desigualdades entre os estudantes.“Nega a ciência e usa palavras fortes para responsabilizar o estudante pelo seu não aprendizado”, classifica. “Uma formação cidadã é coletiva, baseada na solidariedade e participação social, não na disputa individual”.
“São setores que ainda acreditam em visões ultrapassadas, que o medo da reprovação faz os estudantes se esforçarem mais”, pontua Callegari. Alavarse vê esse mesmo discurso reproduzido na escola. “Pergunto: queremos realmente o sucesso de todos os alunos? Em uma sociedade com lógica de competição, a resposta será negativa. Não existe campeonato que todos chegam ao final com mesmo resultado”, pontua.
Para Callegari, uma eventual aprovação do PL endureceria os impactos provocados pela pandemia. “Produziria mais exclusão em crianças e jovens que foram afetados de forma desigual”, opina.“Neste momento, é preciso replanejar a organização das etapas em ciclos mais longos, garantindo o apoio pedagógico complementar de acordo com as necessidades de cada estudante. Portanto, será preciso fortalecer o conceito de progressão continuada, associado a um forte investimento nos profissionais da educação e um diálogo intenso com as famílias”, defende.
(Instituto Claro, Leonardo Valle, 25/04/2022)