Escrito por: CNTE

Quando a brincadeira de boneca vira obrigação

No Brasil, ainda é alto o número de mulheres que engravidam na delicada passagem da infância para a vida adulta. Reduzir esse índice passa por uma mudança cultural que envolve educação sexual, segurança da mulher e muito diálogo

A estudante Renata Silva* (18) descobriu que estava grávida durante um tratamento para fazer uma cirurgia no seio, aos 15 anos, e conta que foi uma sensação muito estranha: “No começo assusta, porque a adolescência acaba e a gente vira mãe. Eu penso que agora não sou mais só eu. Agora somos nós; eu e a minha filha contra o mundo”, reflete.

Ela não está sozinha. De acordo com o relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), publicado em 2018, o
Brasil tem 68,4 bebês nascidos de mães adolescentes a cada mil meninas de 15 a 19 anos. O índice brasileiro
está acima da média latino-americana, estimada em 65,5. No mundo, a média é de 46 nascimentos a cada
mil. Ainda de acordo com o estudo, a mortalidade materna é uma das principais causas da morte entre adolescentes e jovens de 15 a 24 anos na região das Américas.

Segundo a pesquisa Nascer Brasil (2016), do Ministério da Saúde (MS), 66% dos casos de gravidez em adolescentes são indesejados. O MS informa que, entre os anos 2000 a 2016, o número de casos de gravidez na
adolescência (10 a 19 anos) teve queda de 33% no Brasil, segundo dados do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (Sinasc).

Políticas públicas de saúde

O Ministério também informa que o Brasil vem investindo em políticas de educação em saúde e em ações para o planejamento reprodutivo. Uma das iniciativas é a distribuição das Cadernetas de Saúde de Adolescentes (CSA), com as versões masculina e feminina. A caderneta contém os subsídios que orientam o atendimento integral dos jovens, com linguagem acessível, possibilitando ao adolescente ser o protagonista do seu desenvolvimento.

Apesar de ter acesso à informação e de saber da importância da camisinha, Renata e o namorado tiveram dificuldades em usar os métodos contraceptivos. “Na época, nós não ligamos muito para o uso da camisinha, porque não imaginávamos que íamos ficar grávidos”, explica a agora jovem mãe.

A história foi parecida com a da Juliana de Almeida*, enfermeira, que teve uma filha aos 16 anos. “Eu tinha
noção do corpo humano e que após a menstruação eu poderia engravidar se tivesse relações sexuais. Mas não conhecia bem os métodos contraceptivos.

Além disso, meu então namorado (na época com 21 anos) não gostava de camisinha. E não tinha como eu dizer pra minha mãe que eu queria um contraceptivo porque estava transando, sabe?”, recorda.

Apoio popular
Pesquisa do Instituto Datafolha aponta que, para a maior parte da população, educação sexual deve ser tema tratado nas salas de aulas do país. Foram ouvidas 2.077 pessoas, em 130 municípios, nos dias 18 e 19 de
dezembro de 2018. O apoio à educação sexual nas escolas alcançou 54%.

O endosso é maior entre as mulheres do que entre homens (56% e 52%, respectivamente). Quanto maior a
escolaridade, maior também a anuência com a previsão desse conteúdo. Entre aqueles com ensino superior, o
percentual é de 63%. Os que desaprovam totalmente somam 35%.

Para a enfermeira Juliana, as consequências de uma gravidez precoce foram cruéis. “A sociedade te vê como uma demente. É um olhar de piedade em cima de você. Tudo isso faz você achar que acabou, que a sua chance já foi, que você nunca vai ser bem sucedida. Ter um relacionamento? Surreal. Na minha situação estou casada e em terapia pra querer isso tudo novamente. Mas com outro gosto. Ter o que tenho hoje me deixou egoísta. Quero meu sossego, minhas viagens, baladas. Eu tive que ter responsabilidade muito cedo”, desabafa.

Sobre educação sexual nas escolas, Juliana avalia: “Hoje, minha filha tem 18 anos e escutou a vida inteira sobre isso. Acho que é importante educação sexual na escola, mas focamos muito em DST e ainda temos aquela cultura de que filho é bênção é melhor que ter uma doença. Mas não. Se temos métodos contraceptivos, precisamos usar. Precisamos de leitura e debates”, sentencia.

Consequências
A jovem Rayane de Assis* teve apoio para continuar estudando, mesmo após o nascimento da filha. “Não parei de estudar em nenhum instante, eu ia pra escola até os nove meses e, logo após o nascimento da minha filha, eu esperei passar um mês e voltei a estudar. A minha filha ia junto comigo às aulas”, detalha. Ela ressalta que teve muito apoio, principalmente dos professores.

“Eles seguravam ela no colo para eu fazer os trabalhos e quando ela ficava chorando os professores, às vezes, me liberavam mais cedo pra eu cuidar melhor dela em casa”. Mas nem todas conseguem conciliar os estudos, Juliana teve que parar de estudar e hoje lamenta o tempo perdido. “Na época, eu achei que seria feliz. Hoje, vejo que só atrasei em oito anos a minha independência, minha liberdade, meus conhecimentos”, pondera. Ela conta que teve que parar de estudar e só voltou depois de um tempo, atrasou a entrada no ensino médio e na faculdade, sem contar a morte repentina do pai da criança, quando ela ainda estava grávida de cinco meses: “Os avós paternos não queriam registrar a bebê. Procurei a justiça e consegui. Hoje ela recebe INSS”, relembra.

“O único ponto positivo é ela. É saber que eu consegui. Mas eu não precisava passar por isso. E se eu voltasse atrás, não faria”, desabafa Juliana. A família dela deu apoio financeiro e mesmo assim não foi fácil. “Afinal, quem ia contratar uma adolescente de 16 anos, mãe de um bebê e viúva? Ninguém queria nem me namorar! Quando comecei a receber o INSS dela, eu decidi que era melhor eu bancar meus estudos e deixar ela na escola pública. Isso doeu. Em quatro anos me formei em Enfermagem, fiz residência e hoje eu pago pra ela um dos melhores colégios da minha cidade”. Aos pais de jovens adolescentes ela recomenda: “Observar. Atenção é tudo. Eles dão sinal de fuga. Prender demais é um tiro no pé. Liberdade demais também. Precisamos falar a língua deles. Filhos seguros e esclarecidos são a herança dos pais”.

Vila Aliança
Organizações não-governamentais, que atendem crianças e jovens de baixa renda, também tentam colaborar para diminuir esses índices. Esse é o caso da Organização Não Governamental (ONG) Semente do Amanhã, na Vila Aliança, em Bangu, na Zona Norte do Rio de Janeiro (RJ). A fonoaudióloga Selmirami Nascimento, mais
conhecida como Tia Selminha, dirige os trabalhos da organização e conta que, entre os jovens atendidos pela
instituição, poucos passam uma gravidez na adolescência. Ela acredita que as próprias atividades desenvolvidas,
como a Roda de Conversa com os adolescentes e os projetos culturais, ajuda a prevenir. “A gente faz um trabalho de prevenção, mas quando raramente acontece, a gente conversa com a jovem e o foco muda: a responsabilidade do filho passa a ser dividida com a família”, explica.

A vulnerabilidade social também é um problema que contribui para o alto índice de adolescentes grávidas. É o caso de Soraya Rocha*, que aos 13 anos se descobriu grávida e só decidiu contar para a família depois de três meses de gravidez. O pai do bebê é um perigoso traficante da comunidade de periferia onde ela mora. Pela
idade de Soraya, a relação sexual é considerada estupro de vulnerável. A mãe da adolescente, que trabalha
como faxineira em casa de família, desabafa: “Eu sei que é um crime. Mas eu moro numa comunidade onde os
bandidos acham que podem engravidar meninas de 13 anos. E fica por isso mesmo. Quando fiquei sabendo, eu
fui atrás dele e bati nele. Eu o agredi, é um canalha. Pensei em dar um remédio pra minha filha não ter essa
criança, porque eu não tenho condições de cuidar. Mas pensei melhor e achei que isso poderia acabar prejudicando a saúde dela e me complicar na justiça”. Soraya conversou brevemente com a reportagem — disse que gostaria de dar um depoimento, mas como é muito recente ela ainda não consegue falar sobre essa gravidez, nem sobre expectativas.

Ao ser questionada sobre procurar a polícia ou denunciar, a mãe de Soraya explica que tem medo de morrer, pois está lidando com um traficante e, além disso, o tratamento no posto de saúde não reconhece a gravidade da situação: “Nós vamos ao posto de saúde para fazer o pré-natal. Mas eu já sei que lá eles vão me culpar, vão dizer que eu não cuidei da minha filha, que eu sou a errada. Eu me sinto muito envergonhada. Eu crio quatro filhos praticamente sozinha, só a minha filha mais nova (nove anos) tem pai — e ele atrasa a pensão. Não sou fichada (empregada com carteira assinada), mas nunca parei de trabalhar. Acho que a comunidade é que tinha que ser a primeira a entender que fazer filho nas filhas adolescentes dos outros é errado. Mas os traficantes acham que é certo, eles não ligam. Não acredito mais na justiça”, desabafa.

*Omitimos os nomes reais das personagens para proteger as mulheres que compartilharam suas histórias íntimas.

Entrevista: Keka Bagno

A assistente social Keka Bagno, conselheira tutelar e ativista do Fórum de Mulheres do Distrito Federal, conversou com a Revista Mátria sobre esse índice elevado de gravidez na adolescência. 

Como saber quantas gestações na adolescência são frutos de violência?
No Brasil, o debate do aborto é extremamente delicado e sensível. É algo que a gente não consegue aprofundar
como direito das mulheres, mesmo nos casos de aborto legal, (estupro, risco à gestante e gravidez de anencefálicos). No caso de adolescentes grávidas, as famílias acabam entendendo que a decisão pela interrupção da gravidez é do adulto e não da adolescente. Então essas adolescentes vêm sim a ter filho fruto de estupro. Tanto para adolescentes com menos de 13 anos ou mais, isso é muito comum infelizmente. Se você compreende que esse estupro, muitas vezes, vem pra dentro de uma relação doméstica (de um pai, de um padrasto, de um
irmão), como essa família vai dar conta dessa criação, de todas essas problemáticas?

Geralmente a criança e o adolescente não conseguem compreender a própria violência que sofreram, e ainda vão ter que compreender a criança que virá sendo fruto de, provavelmente, algo destruidor que aconteceu em suas vidas. Então, a gente não conseguiu reconhecer o aborto em casos legais. Não temos políticas hoje, na área da saúde, na área de infância e adolescência, que de fato façam uma divulgação, uma promoção desse direito que foi conquistado com muita luta pelos movimentos de mulheres. Não é em todos os lugares do Brasil que você tem um local seguro para fazer a interrupção da gravidez em caso de aborto legal. É necessário que a política pública se envolva mais nos casos de aborto legal, não só no período de abortamento como também, após o processo de interrupção dessa gravidez.

Quais políticas públicas podem apresentar resultados positivos na prevenção da gravidez de adolescentes?
Acredito que as políticas públicas fundamentais são de promoção do que é o corpo da mulher e no que é o corpo do homem, considerando as múltiplas diversidades enquanto homens e mulheres. Seria importante a gente conseguir ter, de fato, um diálogo sobre isso dentro da casa ou no local onde esses adolescentes moram. A gente tem dificuldade de dialogar sobre isso nesses espaços coletivos. As crianças e adolescentes podem morar com avó ou avô, em lares. Precisamos dialogar sobre desejo, prazer, falar sobre camisinha e pílula. Mais do que falar com a menina é falar com os meninos: os homens precisam entender sobre a importância de ter uma relação sexual segura, prazerosa e com afeto. A gente consegue inclusive prevenir futuras violências.

Você acha que a educação sexual pode ajudar a diminuir esses índices?
Acredito que a educação sexual é o principal fator. A gente tem esse tabu muito grande que é falar sobre isso. Quando você fala em educação sexual o que está sendo entendido hoje é o incentivo à sexualização. Como se fosse possível mudar a sexualidade, o gênero. Isso é extremamente individual do ser humano! Precisamos de uma educação que fale sobre cuidado do corpo, de você se amar, e isso é uma forma de diminuir esses índices.

Essa educação sexual pode ser feita em quais espaços? Na escola? No posto de saúde? Quais são os
mais adequados, em sua opinião?
Acredito que você tendo pessoas especializadas para fazer esse tipo de educação, respeitando as diversidades
e os valores individuais, isso pode ser feito nos espaços de escola e postos de saúde. Nas escolas públicas, a gente não tem alcançado. A ausência de políticas públicas e educação tem mais morosidade de ocupar as periferias. Então, acredito que em escolas e postos de saúde, Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), que têm comprometimento com essa pauta, dá pra ser feito um atendimento de qualidade.

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