Escrito por: CNTE

Sou mulher, sou quilombola e tenho poder

Se existe uma palavra para definir o povo Quilombola, essa palavra é resistência. E, quando o assunto se refere às mulheres, o peso do verbete fica ainda mais forte. No Brasil, as mulheres quilombolas são exemplos de luta, superação e determinação. Contra tudo e contra todos, elas foram à luta e muitas buscaram seu empoderamento para, cada vez mais, defender e garantir os direitos do seu povo.

“O nosso povo construiu esse país e levantou o império e a riqueza do Brasil. Não vejo o país sem o nosso sangue, a nossa exploração. O império brasileiro não foi feito pelos europeus, pelo homem branco; o nosso sangue é a nossa marca”, comenta Sirlene Barbosa Correa Passold, 37 anos, do Quilombo Puris, uma comunidade a 35 quilômetros da cidade de Manga, em Minas Gerais.

No Brasil, há 3,1 mil quilombos certificados pela Fundação Cultural Palmares; o de Puris é um deles. Com 80 famílias, Sirlene acredita que a sua comunidade tenha aproximadamente 250 anos. “O meu avô é de 1913 e ele já nasceu na comunidade”, recorda.

Quilombola, Sirlene conta que, embora sua mãe tenha se casado com alguém fora da comunidade, ela nunca perdeu o vinculo e sempre esteve presente no quilombo. Em 2012, Sirlene se graduou em Serviço Social e retornou para a comunidade. “Foi quando percebi que o quilombo passava por dificuldades, com muita falta de informação, sobre direitos sociais”, conta.

Sirlene ainda concluiu mestrado, em 2015, pela Universidade de Brasília (UnB), com o tema: A valorização da cultura afro-brasileira e da beleza negra. “A gente vinha desenvolvendo este trabalho na comunidade e trabalhei
justamente a autoestima das mulheres quilombolas, que se viam como pretas remanescentes de escravos”,

Sirlene começou a desenvolver, com as meninas quilombolas uma espécie de resgate de suas identidades por meio de estilos, confeccionando roupas de chita, valorizando cada uma e a sua beleza. Para se manter em Brasília durante o mestrado, ela criou uma grife baseada na cultura Quilombola, a Arte Negra. “Foi uma maneira que encontrei de disseminar nossa cultura e ainda conseguir recursos para complementar a minha bolsa de estudos”, explica. Hoje, sua grife tem perfil nas redes sociais e vende as peças pela internet.

Próximo a Brasília, outro Quilombo rende exemplos de mulheres da comunidade que trabalham pela valorização e empoderamento da sua cultura. O Quilombo Mesquita, a 60 quilômetros da Capital Federal é a casa de Sandra
Pereira Braga.

“Filha de João Antônio Pereira e Ovídia, nasci aqui. Um quilombo com 272 anos de história, no qual meus avós, bisavós e meus pais já moravam”. É assim que Sandra se apresenta. Formada em turismo, também fez teologia, e sempre teve seu foco voltado para o trabalho dos quilombolas. Atualmente, ela é coordenadora executiva da
Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

O Quilombo Mesquita tem 4,2 mil hectares e 780 famílias. O reconhecimento da comunidade veio por meio de um trabalho incansável de Sandra que, em 2003, deu entrada no processo de reconhecimento, que veio três anos depois, e teve o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) do território publicado em 2011.

O pai de Sandra conta que ela sempre foi incansável e que, por isso, recebeu do avô a incumbência de lutar pelas terras quilombolas. “Antes de falecer, meu pai procurou Sandra para ser a representante da comunidade e em 2003, passou o bastão para ela, porque era a única pessoa da comunidade, da família, que poderia tomar conta e falar sempre a verdade”, afirma João Pereira.

“Não tem sido fácil”, reconhece Sandra, que foi a primeira mulher vereadora da Cidade Ocidental, município ao qual pertence o quilombo Mesquita. “Como é difícil, como mulher, ter que impulsionar e trabalhar a soberania; alimentar, cuidar do meio ambiente, da casa, da família e também fazer o papel de mostrar o quanto isso é importante. Não podemos abrir mão!”, resiste.

Muda a unidade da Federação, mas não muda a realidade. Sentimento semelhante tem Xiforneze Santos, 41 anos, do quilombo Caraíbas, no município de Canhoba, em Sergipe. A área possui mais de três mil hectares e 160 famílias quilombolas. Mãe de nove filhos, Neze, como é conhecida, trabalha há 20 anos como merendeira na escola municipal Manoel Gonçalves Sobrinho. “Sou concursada e tenho formação na militância”, orgulha-se.

Três dos seus filhos moram fora do quilombo por necessidade de trabalho e estudos. “Um estuda Agroecologia
e outro Serviço Social, e os demais concluindo ensino médio”, conta. Neze ressalta que a luta tem
que ser constante, principalmente contra o sistema. “Tenho desenvolvido, com a comunidade, ações para
que percebam a importância da comunidade, com discussões, ocupando espaços de conselhos, fóruns,
tenho representado minha comunidade”, explica.

Assim, como Sandra, do quilombo Mesquita, Neze enfrenta fazendeiros da região que querem desconstruir e
desmanchar o quilombo. As duas já sofreram ameaças: “até de morte”, lamenta Sandra. Mas, segundo
ambas, a luta quilombola não tem preço. “Precisamos nos unir e nos conscientizar ainda mais. E com
o estudo e o empoderamento das mulheres, principalmente, vamos mais longe”, aposta Neze. “Acho que
não podemos parar. É resistência mesmo”, completa Sandra.

Quantos são?

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), responsável pelo recenseamento da população brasileira e organização de dados estatísticos socioeconômicos e demográficos oficiais do país, realizará em 2020 o primeiro censo da população quilombola do Brasil.

O Censo Demográfico do Brasil incluirá o perfil de comunidades quilombolas de todo território nacional. A iniciativa é fruto de uma parceria entre o Ministério dos Direitos Humanos, por meio da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, a Fundação Cultural Palmares, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária e o Fundo de População das Nações Unidas.

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