Escrito por: CNTE
Cada vez mais trabalhadores se submetem a contratos sem garantias trabalhistas e com longas jornadas
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), divulgada no final do ano passado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil tem 12,9 milhões de pessoas desempregadas, entre a população economicamente ativa. Com isso, aumentou o número de trabalhadores que se submetem a contratos precários, sem garantias trabalhistas e com longas jornadas de trabalho, tal como acontece com aquelas pessoas que buscam seu sustento trabalhando como motoristas de aplicativo. Um fenômeno que se convencionou chamar de “uberização”.
Segundo a pedagoga Adércia Hostin, do Fórum Nacional de Educação (FNPE), são diversos os tipos de contratação enquadrados nos moldes de afrouxamento das garantias trabalhistas, mas a mais crescente, e que tem se alastrado pelo Brasil, é mesmo a que faz referência ao aplicativo de transporte. “Na educação, não foi diferente”, afirma a pedagoga. “A questão é que, em meio ao turbilhão, muitos professores ainda não se deram conta das consequências dessa prova de fogo - fazer com que o trabalho remoto seja aceito a qualquer preço”, alerta.
O trabalho no aplicativo cria a falsa sensação de que o trabalhador está inserido no mercado. Mas, na verdade, é ele o responsável pelo produto que vai vender e pelo serviço que vai prestar. Em artigo publicado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), a pesquisadora Amanda Moreira da Silva mostra que se trata de um novo passo na terceirização, quando empresas desenvolvem mecanismos de transferência de custos e riscos, não mais para empresas terceirizadas, mas para uma multidão de trabalhadores autônomos, retirando suas garantias mínimas e, ao mesmo tempo, consolidando a sua subordinação. “Nesse tipo de vínculo”, explica a pesquisadora, “as formas de controle são, aparentemente, pouco tangíveis, pois não há horário fixo de trabalho. Além disso, o trabalhador não é um empregado e a empresa não é sua contratante”.
No escopo dessa discussão está o que significa o trabalho remoto. Adércia Hostin explica que, no contexto atual, ele é uma ferramenta de apoio pedagógico que, por intermédio do professor, em plataformas digitais e outros instrumentos disponibilizados pelas instituições de ensino, permite que o aluno acompanhe e realize atividades de acordo com as disciplinas da sua série, uma medida paliativa para o ensino-aprendizagem neste momento de pandemia.
Entretanto, alerta a pedagoga, o que em um primeiro momento parece um avanço na educação, abre brecha para se tornar uma modalidade de ensino a distância, reconhecida aos moldes de como acontece no ensino superior, com grande parte dos professores sendo substituídos por tutores. “Nesse contexto, os docentes têm sua carga horária falsamente subtraída e consequentemente sua remuneração, embora o trabalho online demande ainda mais tempo de preparação”, avalia.
Em seu estudo, Amanda Silva mostra que a relação professor-aluno, que em uma sala de aula convencional é de aproximadamente 40 para um, pode chegar a 400 alunos para um professor, em uma plataforma online. “Se esta forma de organização do trabalho prospera, um professor, em sua casa, atende 400 alunos ‘online’. A própria plataforma monitora o tempo gasto pelo professor e gera a base de sua remuneração”, explica.
Para a Adércia, a normalização desse processo de distanciamento social, bem como a falsa noção de que os docentes devem dar conta dessa demanda a todo custo, como troca dos processos de aulas presenciais, irão aprofundar ainda mais as desigualdades sociais educacionais do país, agora com ênfase no acesso à internet que, segundo ela, é um serviço ainda caro e prestado com má qualidade.
“Não se faz trabalho remoto apenas migrando o conteúdo das aulas presencias para as plataformas virtuais”, pontua a pedagoga. “Precisamos lidar com o fato de que a imensa maioria dos docentes não tem especialização no uso das tecnologias. E que as próprias instituições de ensino, muitas vezes, não dispõem do aparato tecnológico para essas demandas”, avalia. Na sua opinião, a prioridade deveria ser garantir o acesso universal dos estudantes às ferramentas tecnológicas de ensino, a capacitação dos professores e os processos de acompanhamento e avaliação das aulas não presenciais. “A questão é que essa sequência de fatores necessários não se dá no meio de uma crise sanitária de nível mundial, ainda mais quando são irrelevantes para o governo federal e para o próprio Ministério da Educação”, lamenta Adércia.
A pedagoga lembra que o ensino à distância começou como uma alternativa para os lugares onde não era possível o acesso à educação tradicional, como no campo e em áreas ribeirinhas. “A ampliação da demanda, contudo, faz com que o ensino à distância nem sempre seja ofertado com a devida preocupação em relação à qualidade”, explica Adércia. “No ensino superior, por exemplo, isso deixa muito a desejar no quesito principal, que é a garantia de excelência. Já no caso da educação básica, independentemente de acontecer no setor privado ou na rede pública, isso trará consequências estruturais, com o desmonte da docência, da inclusão e da educação como política social”, pondera. “Um dos efeitos será, em pouco tempo, o escoamento de dinheiro público para a inciativa privada e um abismo social e meritocrático a ser enfrentado”, conclui.
Ranqueamento de docentes
Para Amanda Silva, a tendência à uberização do trabalho docente pode vir a aliar o trabalho intermitente com o monitoramento, fazendo com que os sistemas de reputação sejam utilizados como um mecanismo de controle mais rígido para estilos disciplinares centralizados.
Na economia do compartilhamento, há uma relação direta entre fornecedores de serviço e consumidores, na qual as regras de proteção do consumidor são substituídas por algoritmos e sistemas de classificação. “Como na Uber, em que, no coração do controle, está o sistema de reputação do motorista, que permite aos passageiros classificar os condutores, o mesmo poderia ser atribuído ao trabalho docente. Assim, os professores também poderiam ser avaliados por estas plataformas e, dependendo do resultado de seu desempenho, permaneceria ou não como um candidato ao trabalho”, conclui.
Segurança de dados
As plataformas digitais se tornaram intermediárias fundamentais da educação. Essa é a avaliação de Tel Amiel, professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília e coordenador da cátedra UNESCO de EaD da UnB. Ele se baseia em dados do projeto Educação Vigiada, que, dentre outras vertentes, foca em informações sobre como a América do Sul está se tornando dependente desses espaços. Para o professor, as universidades dependem do uso de aparatos técnicos, como e-mail ou equipamento de videoconferência. “Esses espaços se tornaram, de fato, uma plataforma de mediação pedagógica e, em muitos casos, de gestão”, assegura.
O professor afirma que o movimento, que se iniciou antes da Covid-19, se consolidou na pandemia. “Esse movimento surge com a precarização do investimento na educação pública e corrobora uma moção de educação chamada, erroneamente, de híbrida, que transforma todos os níveis de ensino em momentos que misturam o presencial e virtual”, explica.
Tel Amiel destaca que o problema, segundo ele, foi a forma acelerada e a falta de diálogo sobre como essa plataformização se daria. “A gente cria uma dependência gigantesca, nem olha para alternativas porque está todo mundo lá e o trabalho de migração seria muito mais complicado. Você está na mão da empresa, principalmente pela oferta do serviço gratuito”, afirma.
Outro fator preocupante para os pesquisadores que estudam o tema, principalmente em empresas como a Google, por exemplo, é o modelo de oferecer serviços gratuitos e a troca de mineração de dados. “O valor desses dados é imenso e nós não percebemos o quanto estamos pagando com eles”, avalia. “O grande problema dessas empresas é que elas têm ordem de lucro do tamanho de estados e nações. Ou seja, estamos tratando de uma concorrência muito difícil”, afirma.
Segundo o professor, os pesquisadores trabalham, há algum tempo, para oferecer modelos de alternativas. “Conversamos com a Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior) e com a RNP (Rede Nacional de Ensino e Pesquisa), que mantêm sistemas para universidades públicas, como o de conferência web, que é utilizado por instituições públicas no Brasil e que funcionam muito bem”, avalia. “O problema é que, para resolver a questão de videoconferência das universidades públicas do Brasil, por exemplo, o investimento do Ministério da Educação é irrisório”, aponta.
Para Tel Amiel, é preciso ter um olhar atento a uma regulamentação sobre o tema. “A maioria das universidades não entende essas parcerias como contratos. Não existe debate nessas instituições. Em muitos casos, as universidades parecem ver essa situação como uma adesão ao serviço gratuito”, conclui.