Escrito por: CNTE
Uma a cada quatro mulheres afirma ter sofrido algum tipo de violência durante a pandemia entre 2020 e 2021
Gritos, ofensas, perturbação do sono, falta de liberdade e, por fim, agressão física. Essa soma de situações foi vivida por uma entre quatro mulheres brasileiras com mais de 16 anos, que afirmam ter sido vítima de algum tipo de violência, entre 2020 e 2021, durante a pandemia de Covid-19, segundo dados do Instituto Datafolha, reunidos na pesquisa Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Essas foram também as situações que levaram Ana Carolina*, advogada de 25 anos, a sair da casa dos pais, em agosto de 2020. “Me vi em uma situação insustentável, com medo de ser morta pelo meu próprio pai”, relata a jovem.
Um dos destaques da pesquisa foi exatamente o que aconteceu com Ana Carolina. A violência deixou de ter como cenário a rua, de ser praticada por desconhecidos e passou a ser sofrida dentro de casa, por pais, mães, irmãos, irmãs, filhos, filhas, padrastos e madrastas. A quantidade de mulheres que afirmaram ter sofrido algum tipo de violência é de 17 milhões (24,4% do total da faixa pesquisada), o que significa um leve recuo em relação à pesquisa de 2019, quando 27,4% afirmaram ter sofrido algum tipo de agressão.
Perigo dentro de casa
De acordo com o FBSP, apesar do leve recuo, o caso precisa ser analisado no contexto da pandemia, em que muitas pessoas não saíram às ruas e acabaram sofrendo as agressões em casa. Na pesquisa de 2019 a figura do vizinho tinha sido a segunda mais citada como autor das violências. Nesta última, ela sequer foi mencionada.
“Já tinha passado por situações, principalmente aquelas de cantadas e tentativas forçadas de beijo em festas, que são péssimas, mas eu nunca tinha sido fisicamente agredida pelo meu pai, nem quando criança”, conta Ana Carolina. Segundo a advogada, com o início da pandemia, o pai, a mãe e ela passaram a trabalhar em home office e, a partir daí, começaram as agressões. Ela relata que, nos primeiros meses, entre março e abril, começaram as agressões verbais e os gritos, principalmente porque não acordava cedo. “Não tinha a menor necessidade de estar de pé às 7h. Eu, efetivamente, tinha que trabalhar a partir de 13h, então aproveitei para descansar. Mas ele não aceitava, ia me acordar gritando, sacudindo e uma vez me derrubou da cama”, lembra.
Apesar disso, ela se manteve em casa e seguiu tentando lidar com o pai. A mãe também sofria algumas agressões, mas não reagia nem para se defender, nem para defender a filha. O uso de álcool passou a ser mais frequente em todos na família e isso, segundo Ana Carolina, foi o que desencadeou as agressões, já em agosto.
Um sábado Ana saiu para ir ao mercado, ela conta que estava fazendo quase tudo que era de rua para evitar que os pais saíssem, por conta da idade. Àquela época, a orientação era de proteção aos idosos. Era a população mais vulnerável ao vírus. “Quando voltei para casa, meu pai estava bêbado e gritando com minha mãe. Eu pedi que ele parasse e a chamei para me ajudar a limpar e guardar as compras. De repente eu só senti os tapas por trás. Ele estava enfurecido e me atacando, nem sei como saí e me tranquei no quarto”, relembra a advogada.
Depois da agressão ela mudou para a casa de uma tia e ainda mantém contato com a mãe. Mas, desde então, nunca mais falou com o pai. “Não sei se vou poder perdoar isso. Foi algo muito traumatizante, sem necessidade ou razão”, explica. “Foi um ataque gratuito e não aceito o álcool como desculpa. Estou fazendo terapia para entender tudo. Deixei minha mãe sozinha e ainda temo por ela”, lamenta a advogada. Ela afirma que fez registro da agressão na delegacia, no dia do acontecimento, mas a pedido da mãe retirou a queixa.
Números
Em sua terceira edição, a pesquisa ouviu 2.079 mulheres acima de 16 anos, entre os dias 10 e 14 de maio de 2021, em 130 cidades do Brasil. As respostas tinham como referência o período de 12 meses anteriores à pesquisa.
Entre as principais formas de violência sofrida, a maioria disse ter sofrido ofensas verbais (18,6%). Outras 6,3%, assim como Ana Carolina, foram vítimas de violência física, como tapas, chutes ou empurrões; 5,4% passaram por algum tipo de ofensa sexual ou tentativa forçada de relação; 3,1% foram ameaçadas com faca ou arma de fogo e 2,4% foram espancadas.
Mulheres negras, separadas/divorciadas entre 16 e 24 anos foram as principais vítimas de agressão. A pesquisa mostra ainda que as vítimas de violência doméstica estão entre as que mais perderam renda e emprego durante a pandemia.
Em 2020, um outro levantamento feito pelo Fórum B, a pedido do Banco Mundial, revelou que o número de feminicídios no país cresceu 22,2% em março e abril daquele ano, em 12 estados brasileiros, em relação ao mesmo período de 2019. Só no estado de São Paulo, os casos aumentaram 41,4%.
Segundo Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP, a pandemia de coronavírus agravou a situação de vulnerabilidade das mulheres. “O cenário da pandemia acentua várias das vulnerabilidades a que as mulheres, em situação de violência doméstica, já viviam. Uma delas é o fato de muitas delas estarem confinadas com os agressores”, afirma.
Apesar do aumento de casos de feminicídio, houve uma queda de 21,8% nos registros de lesão corporal dolosa em decorrência de violência doméstica, em março e abril de 2020, com relação ao mesmo período de 2019. A média nacional foi de queda de 25,5%. “Isso indica uma dificuldade na denúncia e não uma queda no número de agressões”, explica o psicanalista Newton Molon do CAP – Instituto de Psicanálise de Brasília.
Segundo o psicanalista, a situação de confinamento com o agressor deixa a mulher se sentindo ainda mais vigiada e, sem a possibilidade de ir à rua, o acesso às formas de denúncia diminui, principalmente com a figura do “vigia” sempre ao lado. “Não dá para fazer uma ligação, mandar uma mensagem, porque o perfil desse tipo de parceiro é o que toma conta de tudo, controla os meios de comunicação para evitar que a vítima tenha qualquer contato externo”, explica Molon.
Para o psicanalista, campanhas como a do Sinal Vermelho – na qual as mulheres fazem um X vermelho na palma da mão ou em um papel, como pedido de ajuda, em farmácias, órgãos públicos e agências bancárias – são essenciais para essas vítimas. “É uma estratégia importante de acolhimento para o espaço que elas têm de saída de casa. Quanto mais estabelecimentos estiverem disponíveis para este tipo de ação, mais importante ela se torna. Padarias, mercados de bairro, entre outros também são locais importantes”, explica.
*A pedido da entrevistada, o nome foi trocado para manter o anonimato.
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