A palavra Cunhantã vem do Tupi Guarani e é a forma como costuma-se chamar s meninas na Região Norte do país. O oposto, Curumim, é usado para referir-se aos meninos. E foi justamente essa forma local e carinhosa de se dirigir às meninas, que batizou um dos projetos de empoderamento das mulheres no Amazonas.
“O projeto começou com o nome Cunhantã Digital, em 2015, com o objetivo de estimular maior participação das mulheres da região amazônica na área de Ciência e Tecnologia, além de promover a interação entre mulheres profissionais e meninas em formação, estimulando o ingresso delas em cursos de graduação e carreiras nesses campos do conhecimento”, explica Tanara Lauschner, diretora do Instituto de Computação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e conselheira do Comitê Gestor da Internet.
Uma iniciativa que tem significado um salto na participação e no envolvimento de mulheres com a área de Tecnologia da Informação (TI) e Ciência da Computação, um mundo dominado por homens. O Amazonas é um dos poucos estados brasileiros onde a população masculina supera a feminina. Ao lado dele, estão Rondônia, Roraima e Pará. Em todo o país, o percentual de mulheres é de 51,48% contra 48,52% de homens, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Não bastasse o fato de estar em um estado numericamente dominado por homens, o Cunhantã Digital se arvorou, também, em
ambiente de predominância masculina, no qual apenas 20% dos profissionais são mulheres, dos mais de 580 mil profissionais de TI que atuam no Brasil, segundo levantamento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Em termos globais, o cenário se repete. Nos Estados Unidos, estima-se que elas ocupem apenas 25% dos empregos em Tecnologia da Informação. E a
Google revelou que 30% de todos os seus colaboradores são do sexo feminino.
De acordo Tanara, já havia outras iniciativas de desenvolvimento de aplicativos com meninas - Projetos de programação da Microsoft. Após o Congresso da Sociedade Brasileira de Computação, “nos aproximamos de um programa, o Meninas Digitais, que já existe desde 2011 com a proposta de replicar a ação em vários estados. Então, criamos o Cunhantã Digital com a referência do nome,
bem local”, disse.
A partir daí, outras iniciativas do Meninas Digitais, voltadas ao ensino do pensamento com putacional nos ensinos médio e
fundamental, foram agregadas. “A meta foi sempre trazer mais mulheres para a TI, onde ainda temos pouquíssimas profissionais”, relata.
Esclarecimento
O projeto trabalha, também, com a formação das meninas que já estão na universidade, na divulgação de cursos como oficinas de programação e lógica. Cem escolas, nos níveis médio e fundamental, já foram alcançadas pelo Cunhantã Digital.
Entre os adolescentes, o trabalho é feito de forma a esclarecer o que é a TI,“porque muitos estudantes nem sabem o que uma pessoa de Ciência da Computação faz. Então, vamos lá para ensinar o que é e dizer para as meninas que é um campo para elas também”, destaca Tanara.
O resultado é que as meninas “acabam gostando bastante”, embora ainda haja muita resistência por parte dos pais que,“via de regra”, dizem para as filhas que elas têm que ser médicas, advogadas ou seguir alguma profissão que eles identificam mais voltadas para mulheres”.
A influência da família é muito forte quando, segundo Tanara, a proposta é falar de áreas de exatas, Matemática e Química, por exemplo. “Elas dizem que não se identificam ou não são capazes”, lamenta.
Avanços
A realidade entre as estudantes inclui relatos de meninas com facilidade para a área e raciocínio lógico bem desenvolvido, mas que optam por fazer Direito.“O projeto tem conquistado avanços”, comemora Tanara. Acompanhamento feito pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) revela que, no ano de 2017, o número de meninas que ingressaram no curso da Ciência da Computação mais que dobrou. Saiu de apenas sete para 16 no ingresso de calouras, num total de 56 vagas disponíveis.
O lado bom é que também tem a influência da família para o ingresso das mulheres na carreira. Um estudo feito pelo projeto para saber o motivo pelo qual elas optaram pela Ciência da Computação revelou que muitas foram influenciadas pelo pai, que já era de TI. Portanto, já tinham contato desde pequenas e isso as incentivou para a escolha.
O Cunhantã Digital promove palestras nas escolas numa maneira de disseminar, desmistificar e esclarecer o que realmente é a Ciência da Computação. Desde que foi criado, estima-se que, pelo menos, dois mil alunos de escolas particulares e públicas de Manaus foram alcançados pelas palestras, feiras e competições.
O trabalho não se encerra ao conseguir levar mais meninas para as universidades nas áreas de exatas. Dentro do ambiente acadêmico, é preciso também desenvolver ações junto aos professores e colegas. “Às vezes, o problema é com os professores que, por exemplo, colocam as alunas para fazerem a documentação e não a programação. Isso cria a noção entre os próprios
colegas de que as meninas são melhores para a documentação, já que o trabalho difícil é o programa”, explica Tanara.
Outros comentários de alunos, segundo ela, beiram o assédio, como quando os discursos de alguns estudantes são de que o professor foi com a cara, ou gosta da estudante, simplesmente porque ela é mulher. “A gente tem combatido essa visão machista dentro do curso. Até porque muitas meninas, nem identificam ou veem o machismo em determinadas atitudes”, disse.
O ingresso de mais mulheres nas áreas de computação significa um salto de qualidade nos programas e nos produtos desenvolvidos. Isso porque a base das decisões em aplicativos e programas parte da análise de algoritmos desenvolvidos, em sua maioria, por homens, “o que acaba refletindo uma visão masculina”, constata.
"Ingresso feminino, principalmente em Ciência da Computação e Tecnologia da Informação, permite que soluções maravilhosas,
que poderiam ter o olhar feminino, não sejam ignoradas. Não podemos prescindir desses talentos”, conclui Tanara.
Meninas Digitais
O programa Meninas Digitais foi criado em 2011 para incentivar estudantes de escolas públicas e de comunidades carentes a se aproximarem dos cursos superiores de computação. O projeto é realizado pela Sociedade Brasileira de Computação (SBC).
No Brasil, o Meninas Digitais está em quatorze estados. Nas aulas de programação, as estudantes das escolas públicas têm oportunidade de perceber um mercado de trabalho que até 2020 deve exigir 1,4 milhão de vagas para apenas 400.000
programadores, segundo dados da Code.org, entidade norte-americana que estimula jovens a aprenderem a linguagem computacional.
Criptografia de uma jovem hacker
Desafio é com ela mesma. E se os obstáculos forem virtuais, melhor ainda. Aos 20 anos, a estudante de Ciência da Computação
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Ingrid Spangler, é uma das (ainda) poucas mulheres que se aventuraram em mundos massivamente dominados por homens, como o da computação, programação, tecnologia e segurança da informação.
Ingrid conta que entrou para esse meio quando começou a se interessar por programação. “Percebi que envolvia a parte da Matemática que eu mais gostava, além de lógica, o meu passatempo favorito”, recorda-se.
“Escolhi a Ciência da Computação sem saber muito bem do que se tratava. No Ensino Médio, sempre tive notas boas em Matemática e Física. Então, conheci um amigo que mexia com código, comecei a me interessar pela área e gostei”, conta.
Foi o suficiente para escolher a Ciência da Computação como curso universitário em 2015 e, menos de três anos depois, virar destaque na área ao se tornar a primeira mulher a vencer uma etapa do Hack a flag, no caso, a de Belo Horizonte (MG).
Hack a flag, ou Capture the Flag (CTF), para os desavisados que não são do meio, é uma modalidade de competição que reúne desafios de Segurança da Informação, envolve diferentes tipos de conhecimento e tecnologias, e pode transitar entre diversos temas.
“Entrei na faculdade sem conhecimento prévio sobre programação e muito menos de hacking”, relata Spangler, que disputou a categoria individual em Belo Horizonte, venceu e ingressou em uma equipe 100% feminina. Além do feito na etapa da capital mineira, conta que fez “o maior número de pontos de 2017”, orgulha-se.
Na avaliação da jovem, os espaços reforçam a presença feminina no meio, uma vez que as elas têm certo receio de participar de competições como a Hack a Flag. “No começo, acham que não vão acrescentar nada e desistem. Meu time tem ajudado as garotas a começarem sem muita vergonha. A gente descobriu que muitas querem entrar na área, mas não encontram pessoas iguais a elas.
Agora, já podem!”, garante.
De acordo com Ingrid, no curso de Ciência da Computação, os homens ainda são maioria. As alunas ficam em torno de 20%, “sendo otimista”, lamenta ela, e complementa: “mas, isso não me incomoda muito. Não percebo muito machismo”.
Ela por ela
Ingrid, na verdade, se considera um ponto fora da curva, porque sempre teve a certeza de que dava conta e nunca duvidou da própria capacidade. Como referências, cita o filme Hacker, de 1995, dirigido por Iain Sof tley e estrelado por Angelina Jolie, Jonny Lee Miller e Matthew Lillard.
A produção retrata as aventuras de um grupo de hackers talentosos, do ensino médio, e o envolvimento deles em uma conspiração corporativa. A obra foi lançada nos anos 1990, quando a internet ainda era um instrumento desconhecido para o público em geral.
Idade – 20 anos
Curso – Ciência da Computação
Equipe – Pyladies
Interesse - em pesquisa sobre Malwares, vírus de computador. “Para descobrir vacinas e analisar como funcionam, já que são feitas a toda hora”.
Desafios - “Todo eletrônico, software, tem uma falha. Os desafios seguem. Pretendo participar de mais campeonatos”.