Políticas afirmativas como a Lei de Cotas (Lei nº 17.711/2012) e a Lei contra o racismo (Lei nº 7.716/1989), têm significado mais espaço para uma população que hoje soma 95,9 milhões de pardos e 16,8 milhões de negros, ou 54,9% dos brasileiros
Em um país onde a maioria é tratada como minoria, os obstáculos de pardos e negros, numericamente majoritários nas estatísticas populacionais, se mostram recorrentes. No entanto, as mulheres negras enfrentam as barreiras com militância ativa e ocupam lugar de destaque na sociedade. A Lei nº.7.716/1989, que estabelece o racismo como crime e a de Cotas, Lei nº. 17711/2012, têm contribuído para o aumento do número de denúncias e o empoderamento feminino.
“A grande questão que se põe hoje é que o racismo no Brasil é tão cruel, que estabelece um lugar de minoria aos negros. E nós não somos minoria, quantitativamente, mas minoria do ponto de vista econômico”, lamenta Cristiane Sobral, atriz, escritora e poeta.
Cristiane foi a primeira atriz negra graduada em Interpretação Teatral, pela Universidade de Brasília (UnB), em 1998. “Numa época em que não existiam as cotas”, lembra. Filha de pais adotivos, nasceu no Rio de Janeiro e mudou-se para a capital do país aos onze anos de idade.
Vinte anos depois, a UnB é a universidade com mais estudantes negros do que brancos. O número de alunos que se declararam negros e pardos, de acordo com levantamento feito pelo Observatório da Vida Estudantil da própria UnB, responde por 50,6% dos matriculados no segundo semestre de 2017. Desde 2003, a universidade adota o sistema. Foi a primeira instituição pública de ensino superior do país a reservar vagas para negros. Em contrapartida, o número de professores negros na UnB ainda é minoria, não ultrapassa os 2% do corpo docente.
As populações parda e negra têm participação nas várias esferas sociais e econômicas, e alcançam espaços mais altos a passos lentos. Apesar da morosidade que a sociedade impõe, os avanços acontecem. “Se hoje colhemos alguns frutos, somos o resultado do movimento negro, de 1978. Frutos de uma militância que plantou tudo que colhemos hoje”, reconhece Cristiane.
Basília Rodrigues, repórter há dez anos da rádio CBN, concorda que há espaços conquistados pelos negros e relembra a época em que entrou para a profissão. Na ocasião, conta, o pai a aconselhou a fazer concurso público para que tivesse espaço garantido e protegido contra ações preconceituosas. “Eu não poderia, na concepção de vida dele, investir em sonhos mais altos. Sonhe,
moderadamente, porque você é negra”, recorda-se do que dizia.
Hoje, com a carreira consolidada – a jornalista é também editora da Revista Evoke e colabora para o Congresso em Foco e Jota, de notícias jurídicas, – ela não se diz imune ao racismo. “Agora, de certa forma, avalio que eles me engolem. Ou, melhor, eu engoli a todos”, diz. Ao longo de carreira, a jornalista enfrentou episódios surreais de assédio e racismo.
Explica que, no início da profissão, foi surpreendida pela chefe, que a abordou no meio da redação com uma proposta que classificava como “irrecusável”. “Falou que a empregada que cuidava da filha dela não podia dormir no trabalho e me propôs que eu fosse ser babá”, relata. Na época, com 19 anos, “não acreditei no que estava ouvindo, até porque a minha chefe dizia que a proposta se encaixava certinho no meu perfil. Por que? Porque eu sou negra?”, se pergunta.
Segundo Basília Rodrigues, a profissional sequer percebeu que estava sendo racista. “Na concepção dela, eu estava tendo uma oportunidade”, lamenta. As mulheres negras no Brasil são 55,6 milhões, chefiam 41,1% das famílias negras e recebem, em média, 58,2% da renda das mulheres brancas, de acordo com os dados de 2015 extraídos do Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça.
Em agosto de 2017, a repórter enfrentou nova situação em que se sentiu constrangida e assediada. Desta vez, pelo parlamentar Wladimir Costa (SD-PA), conhecido como o deputado da tatuagem, por ter escrito o nome do presidente golpista, Michel Temer, no ombro direito.
Basília, na cobertura de um evento, questionou se a imagem era verdadeira e se ele poderia mostrar para simples conferência. Ele respondeu com uma frase machista, misógina e antiética: “para você, só se for de corpo inteiro”.
“Cheguei em casa com a frase latejando em minha cabeça e não aguentei. Escrevi um texto sobre a idiotice”. O texto, publicado no perfil do Facebook da jornalista, fala da idiotice de um deputado e de uma imprensa que precisa rir para manter a fonte.
Costa, após o ocorrido, publicou nas redes sociais fotos da jornalista com um texto no qual dizia estar sendo acusado de assédio. Escreveu: "pelo que eu entendi, um suposto assédio moral, porque me acusar de assédio sexual, vocês podem ver pelas fotos que não tem a menor condição, já que ela está a mil por cento fora dos padrões estéticos idealiza - dos, desejados por um homem e uma mulher".
O fato a fez refletir sobre o que o pai dela lhe disse no início de carreira: “era desse tipo de gente e de situação que ele tentava me proteger. Hoje, eu entendo”, reconhece.
Pioneirismo
“Diretamente por conta da pirâmide social, a mulher negra, desde a época da escravidão, foi obrigada a cuidar dos filhos da branca”, avalia Kenia Maria, a primeira defensora dos Direitos das Mulheres Negras no mundo, pela ONU Mulheres Brasil.
A organização foi criada, em 2010, para unir, fortalecer e ampliar os esforços mundiais em defesa dos direitos humanos das mulheres e abriu a frente Mulheres Negras Rumo a um Planeta 50-50 em 2030, para priorizar e atender a urgência de defesa e visibilidade das mulheres negras. “No Brasil, não conseguimos reconhecer o racismo”, avalia.
Figuras como Lázaro Ramos, Taís Araújo e, mais recentemente, Erica Januza, que interpreta uma juíza em uma novela da TV Globo, e Gabriela Dias, atriz, são exemplos de atores negros que ocupam a mídia.
Gabriela Dias é filha de Kenia Maria e possui em canal do Youtube, o Tá bom pra você, uma websérie da família do ator Érico Brás, seu padrasto”.
O programa comemorou cinco anos, com campanha contra o racismo, além de reivindicar, por meio de jornais e revistas, maior representatividade de negros na publicidade.“Somos mais da metade da população do país e consumimos mais de R$ 1,5 trilhão por ano. Mas estamos representados em apenas 4% da produção audiovisual brasileira, inclusive, na publicidade. E se a gente parar de comprar?”, questiona Kenia.
A questão é quebrar os estereótipos e estes estão sendo derrubados por figuras como Kenia, Basília e Cristiane. “Eu sou uma negra fracassada. Não sou prostituta, não casei e tive cinco filhos. Não cumpri o que estava programado para mim”, ironiza Cristiane.
Segundo a atriz, os avanços existem, mas ainda há muito na sociedade a ser superado. “Hoje em dia, o racismo está saindo do armário. Estamos vivendo outra etapa, porque enquanto a negra era a empregada estava tudo bem, no quarto dos fundos. Agora, quando a negrinha é amiga da filha e faz faculdade de Direito também, você não entende isso. Quando ela passa num concurso e o seu filho não, o racismo aparece nitidamente.
Quando seu filho traz a namorada, que você podia dizer que não tem nível, e agora ela é médica, você vai falar o quê? “, provoca.
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