É em Tamil Nadu, no sudeste de Bangalore, Índia, que há 21 anos uma experiência singular na área de educação vem acontecendo: é a escola Shanti Bhavan. A maior parte dos alunos atendidos gratuitamente nessa instituição (95%) pertence à casta “dalit” (conhecidos como intocáveis). As crianças estudam em regime de internato (têm comida, abrigo e estudos) e só saem após terminar na 12ª série. Isto é, prontos para ingressarem em um curso superior. Apenas uma criança por família pode frequentar essa escola.
É um projeto que atua em diversas questões sociais: um dos critérios de seleção é a família estar baixo da linha da pobreza; outro, é
que a família precisa concordar que a criança não seja retirada de Shanti Bhavan antecipadamente para se casar ou trabalhar. Além disso, traz um forte comprometimento com a vida das meninas, que são tratadas com equidade e preparadas para lidar com os desafios que a sociedade patriarcal impõe.
Shanti Bhavan é um projeto idealizado pelo professor e empresário indiano-americano Dr. Abraham George. Ele começou a construir
a escola com recursos próprios e, depois de um tempo, passou a buscar parcerias e doações para que a escola continuasse atendendo mais famílias. A intenção dele é fazer com que os jovens formados nesse projeto atuem como multiplicadores e que,
após se estabelecerem profissionalmente, eles possam ajudar suas famílias e comunidades.
A escola foi tema do documentário “Filhas do Destino”, que acompanhou por alguns anos a vida de cinco meninas que frequentaram a escola. Também foi tema de reportagem em diversos veículos internacionais.
Para saber um pouco mais sobre o trabalho da escola com as meninas, a Revista Mátria entrou em contato com a escola e conversou, por e-mail, com o diretor de operações, Ajit George. Confira a entrevista.
MÁTRIA: O documentário “Filhas do Destino” (Daughters of Destiny) foca nas alunas. É fácil para as jovens encontrarem trabalho bem remunerado na Índia? Como a escola as ajuda a lidarem com situações de desemprego ou baixo salário?
Ajit George: Nós sempre pensamos que pobreza é o oposto de riqueza, e achamos que a solução é simples. Mas pobreza é profundamente interseccional, tanto quanto social e financeira. A sociedade patriarcal, profundamente enraizada na Índia, considera as mulheres menores, em casa e no trabalho. Isso afeta drasticamente a saúde das mulheres, situação financeira, educação e envolvimento político. As mulheres costumam se casar jovens, rapidamente se tornam mães e estão sobrecarregadas por responsabilidades domésticas e financeiras. Na Shanti Bhavan, nós estimulamos todos os nossos alunos para que eles assumam o controle de suas vidas e tragam mudanças positivas para suas famílias e comunidades. Com 17 anos de intervenção educacional, nivelamos o campo de jogo, permitindo que nossas crianças entrem no mercado global por mérito próprio. Isso inclui reconhecer os desafios específicos que as nossas alunas enfrentam e proporcionar-lhes oportunidades para superar esses obstáculos. Por exemplo, antes de selecionar estudantes do sexo feminino, nós sentamos com suas famílias para explicar a importância de permitir que sua filha complete sua educação e não a retire da escola cedo para o casamento.
Além disso, para garantir que nossas estudantes tenham as habilidades que precisam para competir na força de trabalho, nós dirigimos um Clube de Liderança Feminina (Girls Leadership Club). O clube inclui as estudantes do sexo feminino da 9ª a 12ª série e é um espaço seguro para desenvolver e praticar suas habilidades de liderança, bem como se conectar com mentores, que as apoiam com orientação ao longo da vida e conexões com oportunidades de trabalho.
Sempre que nossos formados enfrentam obstáculos ou desafios, eles sabem que sempre podem chegar a Shanti Bhavan para obter ajuda. Podemos aproveitar a rede global da organização para conectá-los com contatos que podem ajudá-los a garantir um emprego. Esperamos que todos os alunos trabalhem duro, mas estão sempre dispostos a prestar assistência, quando possível.
M: A escola ensina equidade de gênero aos alunos? De que forma?
A: Shanti Bhavan criou uma comunidade de igualdade de gênero desde o início. Isso é estabelecido quando as crianças chegam pela primeira vez à escola aos 4 anos. Em todas as interações, professores, funcionários e crianças mais velhas modelam o comportamento positivo de ambos os sexos. Nós garantimos que as meninas e os meninos sejam tratados como iguais dentro e fora da sala de aula e sempre atribuir a eles papéis de liderança e oportunidades de forma equitativa. Na assembleia, discutimos as notícias e abordamos assuntos atuais sobre questões de igualdade de gênero. Para combater os valores patriarcais tradicionais reforçados nas casas dos nossos alunos, comecei um Workshop de Feminismo para Meninos, que oferece aos nossos estudantes masculinos de 15 a 18 anos a oportunidade de aprender sobre os problemas que as suas mulheres enfrentam e desafiá-los a simpatizar e a tornarem-se aliados na luta contra a discriminação baseada no gênero. Simultaneamente, nossas educadoras aplicam
o “Girls Leadership Club” que ensina nossas jovens mulheres a se defenderem, a capacitá-las como líderes e permitir-lhes um espaço para discutir questões complexas com o apoio de seus pares.
M: No Brasil, a CNTE lançou uma campanha de combate à Cultura do Estupro, que visa erradicar comportamentos violentos em relação às mulheres desde cedo, entre crianças e jovens. A Shanti Bhavan desenvolve alguma campanha ou aula sobre isso? Como funciona?
A: Nossos meninos estão constantemente expostos ao comportamento positivo e às interações com as meninas por meio de
interações variadas com seus professores, administradores e alunos mais velhos. Eles também discutem questões que surgiram nas notícias, como o caso de violação de Deli, e compreendem suas implicações e discutem ativamente sobre como elas gostariam de mudar a sociedade para melhor.
Ensinar os meninos a serem feministas por meio do Workshop de Feminismo para Meninos dá-lhes um senso de consciência e empatia e ajuda-os a evitar cair na cultura masculina tóxica que trata as mulheres como objetos. Minha esperança é que, iniciando essa conversa em uma idade jovem, capacitará nossos estudantes do sexo masculino a serem promotores de mudanças e ajudar a
combater o sexismo dentro de suas comunidades.
M: Em todos esses anos de atuação, como o senhor consegue mensurar as mudanças culturais e econômicas na comunidade onde a escola funciona?
A: Medimos nosso impacto com base nos resultados dos nossos alunos, após cinco anos de conclusão no programa Shanti Bhavan. Nossos graduados são autores, cientistas da computação, engenheiros, empresários, professores e muito mais. Eles estão trabalhando para empresas multinacionais como Amazon, Goldman Sachs e Mercedes Benz. Eles fazem mais nos primeiros cinco anos de suas carreiras do que os pais em toda a vida.Todos os graduados de Shanti Bhavan devolvem 20 a 50% de seus salários para suas famílias, comunidades e outras crianças necessitadas, criando um efeito de ondulação que afeta milhares. As crianças de Shanti Bhavan elevam suas comunidades pagando a dívida geracional, financiando oportunidades de educação para irmãos mais novos, cobrindo os custos médicos e movendo sua família para uma melhor habitação.
Saiba mais: www.shantibhavanchildren.org