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Artigo: Uma maré verde que constrói liberdade

Publicado: 11 Fevereiro, 2019 - 14h51

Escrito por: CNTE

Autora: Yamile Socolovsky
Secretária de Relações Internacionais - CONADU

A luta pela legalização do aborto tem uma longa história na Argentina: sua incorporação na agenda de lutas do
movimento de mulheres faz parte do processo de desenvolvimento de um feminismo que avançou de expressões originariamente vinculadas à militância de alguns setores políticos minoritários e a uma intelectualidade que recuperava e traduzia para as argentinas os debates e as palavras de ordem impulsionadas em outras latitudes, para uma configuração massiva, aberta e plural, que amadureceu nos Encontros Nacionais de Mulheres e, hoje, torna-se visível na “maré verde” que vem ocupando as ruas de todas as cidades do país repetidamente, colocando no espaço público a urgência e a justiça de uma reparação desta dívida da nossa democracia.

Um passo decisivo nesta história foi a constituição, no ano de 2005, da Campanha pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito. Uma construção que foi somando vontades e que, pouco a pouco conseguiu ir ganhando a adesão de uma enorme variedade de organizações e instituições representativas da vida social. Sindicatos, partidos políticos, universidades, organismos de defesa dos direitos humanos e coletivos militantes de cores variadas puderam apropriar-se do Projeto de Lei da Campanha e unir-se à sua estratégia de sensibilização e mobilização que, em conjunto com um paciente e inteligente lobby parlamentar, permitiu, após várias tentativas, que a proposta legislativa fosse debatida em 2018 no Congresso Nacional.

Neste ano, a última versão do Projeto da Campanha foi assinada por mais de 70 deputadas e deputados de quase todos os blocos parlamentares, em um contexto de crescente mobilização do movimento de mulheres, potencializado pelas convocações do Nem Uma a Menos contra a violência machista e, desde 2016, também contra as políticas de ajuste e repressão do governo neoliberal.

Mobilizadas contra todas as violências às quais a cultura patriarcal e o sistema capitalista nos submetem, a penalização do aborto e a condenação à clandestinidade também foram compreendidas como um exercício abusivo do poder sobre as mulheres e as pessoas com capacidade de gestar.

É assim que a reivindicação de reconhecimento legal do direito ao aborto, em uma perspectiva integral que exige também uma política pública que assegure a educação sexual e o oferecimento de métodos anticoncepcionais, foi incorporada como um aspecto central da mobilização que, nesta etapa, ganha toda a vitalidade de um feminismo popular capaz de convocar a juventude e de crescer no interior das organizações políticas e sindicais com uma força inevitável.

É assim que, frente à tentativa do governo de converter essa justa causa e essa ampla luta em uma oportunidade para desviar o eixo do debate social,o movimento de mulheres redobrou a aposta para fazer avançar o debate parlamentar habilitado pelo oficialismo em direção a uma resolução favorável das votações.

E respaldou essa aposta com a mobilização nas ruas e o debate democrático, replicado de mil maneiras em cada cidade, em cada praça, em cada local de trabalho, em cada escola e universidade, nas redes, em assembleias, em
intervenções artísticas, em todo os âmbitos em que os lenços verdes puderam ser exibidos para colocar à prova e demonstrar a legitimidade social dessa reivindicação. O agitar dos lenços e as vigílias acompanharam cada uma
das audiências nas quais foram expressos com todas as modulações imagináveis nossos argumentos a favor da sanção da Lei.

Ali estiveram também muitos sindicatos e, obviamente, também os sindicatos da educação, que puderam expor no Congresso os motivos pelos quais nossas entidades se pronunciaram publicamente a favor da sanção da Lei. Como indicamos na ocasião, é uma realidade que nós, trabalhadoras, quando decidimos interromper uma gravidez, abortamos, mesmo sujeitas às condições de clandestinidade que a penalização impõe e expostas às suas injustas consequências: o silêncio e a ocultação obrigados pela hipocrisia da sociedade, a coação das corporações eclesiásticas, a perversidade do negócio de uma medicina que lucra na sombra, o risco para
a nossa continuidade profissional e para nossa vida, que será maior quanto mais vulnerável e precária for nossa situação, no âmbito do trabalho ou no espaço doméstico. O posicionamento dos sindicatos é uma exigência da própria tarefa sindical e um dever de solidariedade, pois se trata de pôr fim a uma das mais dramáticas consequências da desigualdade de poder em nossa sociedade, que afeta especialmente as trabalhadoras. Por isso, sustentamos que a legalização do aborto é um assunto relativo à justiça social e envolve direitos fundamentais, como o acesso à saúde. A clandestinidade agrava as consequências da desigualdade de condições
sociais; a ausência de políticas públicas condena à morte e a sofrimentos evitáveis especialmente as mulheres pobres.

Temos, além disso, como sindicatos da educação, um compromisso especial com a disputa pela democratização dos espaços e processos de formação da cidadania. Por isso, nossos argumentos também apelam aos governos para que assumam a responsabilidade do estado de garantir que a educação sexual integral no sistema público permita que os alunos e alunas desconstruam, junto com seus professores, as armadilhas culturais que reproduzem o poder patriarcal que impõe a maternidade às mulheres e, em geral, às pessoas com capacidade de gestação, e que castiga o exercício elementar de autonomia pessoal que reside na capacidade de decidir sobre aquilo que afeta o próprio corpo e a própria vida. Trata-se, além disso, de um assunto relativo à autonomia, ao nosso direito de decidir e de não ter que pagar com a estigmatização, com a culpabilização e até com a morte pela rebeldia de exercê-lo. Esta é uma luta profundamente democrática, uma luta pela igualdade e pela liberdade: queremos apagar o fogo da fogueira que uma cultura opressora sempre volta a acender para disciplinar, através de nossos corpos, toda a sociedade.

Finalmente, após ganhar a votação na Câmara dos Deputados, o Senado rejeitou em agosto o projeto de Lei. Apesar do resultado, naquela madrugada, a vigília de centenas de milhares de lenços verdes não teve o gosto de
uma derrota. E embora um preocupante fascismo e obscurantismo tenha se manifestado nestes meses na ativação reacionária de um setor “antidireitos”, temos certeza de ter conquistado a aprovação da maioria da sociedade. Mas, sobretudo, temos certeza de que o poder deste movimento não se deterá. Voltaremos, como a maré, até que seja lei.

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