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"Canción con Todos" - A educação em um mundo de crises e resistências

Conheça a presidenta do Comitê Regional da Internacional da Educação para a América Latina, Sonia Alesso, secretária-geral da Confederação dos Trabalhadores da Educação da República da Argentina (CTERA)

Publicado: 13 Março, 2025 - 10h17 | Última modificação: 17 Março, 2025 - 08h32

Escrito por: Redação | Editado por: Redação

A ‘Canción con todos’, imortalizada pela cantora argentina Mercedes Sosa, é tida como um hino de união e identidade latino-americana. A letra, que diz ‘Siento al caminhar Toda la piel de América en mi piel’ (Eu sinto quando ando,Toda a pele da América na minha pele’), remete a sentimentos de pertencimento e luta. A educadora destaca a importância de união e solidariedade para enfrentar um cenário global marcado por desigualdades e retrocessos.

Nesse um bate-papo exclusivo, a líder sindical aborda temas como a defesa da educação pública, os avanços na luta contra o assédio no trabalho, a crescente migração de professores e estudantes, e a resistência aos ataques às universidades públicas e ao sistema educacional argentino. Compartilhou sua visão sobre o fortalecimento das políticas de gênero e a inclusão de mais mulheres nas lideranças sindicais.

Revista Mátria: Sonia, quais são os principais desafios enfrentados pela educação pública hoje?

Sonia Alesso: Vivemos um cenário global marcado por crises econômicas, políticas e sociais. Na América Latina, enfrentamos retrocessos nas políticas públicas, com cortes na educação, ataques às universidades e perseguições a líderes educacionais. No mundo, a crise migratória e os conflitos armados também impactam diretamente a educação, desde a ausência de alunos e professores até os bombardeios de escolas, que são crimes de guerra.

Mátria: A senhora mencionou a migração. Como isso afeta a educação na América Latina?

Sonia: A migração é um problema grave e global. Muitos países da América Central, por exemplo, estão perdendo professores e alunos devido à migração forçada por fome, guerras e perseguições. Esse fenômeno, muitas vezes invisibilizado, tem efeitos diretos nas escolas e na vida das pessoas. Queremos dar visibilidade a isso.

Mátria: Como a Internacional da Educação tem respondido a esses desafios?

Sonia: Temos promovido campanhas globais, como "Por la Pública, Creamos Escuelas", para defender e fortalecer a educação pública. Estamos engajados na disputa pela educação pública, impulsionando essa campanha. Além disso,  trabalhamos para garantir escolas seguras, lutar por mais investimentos em educação e apoiar professores e comunidades impactadas por conflitos. Estamos também conduzindo uma pesquisa sobre migração para entender os impactos desse fenômeno na educação.

Mátria: E como fica a questão do papel dos jovens na docência?

Sonia: é de extrema importância investir na formação de professores novatos e escutar seus interesses. Estamos desenvolvendo propostas para incluir mais jovens na docência e também trabalhando com universidades e institutos de formação docente. Além disso, a defesa da democracia e a solidariedade internacional continuam sendo fundamentais, pois, líderes na América Latina e em outras partes do mundo estão sendo perseguidos ou assassinados por suas posições.

A solidariedade internacional se estende à defesa de líderes educacionais e comunitários, que estão sendo alvo de perseguições e violência. Em setembro de 2024, o presidente do STEG, Sindicato de Trabalhadoras e Trabalhadores da Guatemala, Joviel Acevedo, foi atacado, e dois docentes assassinados. A perseguição a líderes sindicais e sociais, especialmente aos povos indígenas, é uma realidade alarmante.

Mátria: E como a educação pública pode resistir a esse cenário?

Sonia: A resistência passa pela união e solidariedade. É essencial fortalecer os sindicatos educacionais, investir na formação de jovens docentes e garantir que a educação seja uma ferramenta de transformação. A defesa da democracia e dos direitos humanos também é central.

Mátria: No contexto de gênero e diversidade, quais avanços a senhora observa?

Sonia: A Internacional da Educação tem dado voz às mulheres, às comunidades LGBTQIA+ e aos povos originários, cujas histórias muitas vezes são silenciadas. Criamos espaços para que essas minorias compartilhem suas vivências e desafios, especialmente os professores indígenas, cujo papel é fundamental. A inclusão e o fortalecimento dessas comunidades são prioridades.

Queremos que suas vozes sejam ouvidas e que compartilhem o que está acontecendo em cada país da América Latina o trabalho para recuperar o papel dos docentes indígenas, especialmente, tem sido um ponto forte na agenda da organização.

Mátria: Como avalia a situação da América Latina hoje?

Sonia: A região vive um momento complicado, com o avanço de governos de direita que promovem retrocessos. Porém, também vemos processos de esperança, como no México, embora a situação seja ainda muito difícil em outros países como Colômbia e Chile, ou seja, estamos diante de um cenário latino-americano complicado. O movimento sindical educacional tem desempenhado um papel crucial na defesa da democracia e dos direitos humanos.

A Internacional da Educação para a América Latina (IEAL) desempenha um papel muito importante em cada país, na abordagem de questões educacionais e, também, na disputa pela a agenda política em defesa dos direitos humanos e dos direitos das mulheres. 

Mátria: E a situação na Argentina, seu país natal?

Sonia: Argentina vive o momento de um governo de livre direita que não encontra paralelo especialmente em temas de raça e classe, algo que não fazia parte da agenda política do país. 

Situação também presente na direita brasileira, com Bolsonaro, ou na direita uruguaia e no Chile. O pacto democrático pós-ditadura na América Latina foi claro ao afirmar ‘nunca mais’ para golpes militares ou ações violentas e autoritárias da direita na região.

Mátria: E a relação Sul-Sul

Sonia: A solidariedade entre a América Latina e a África é essencial. Esses continentes têm sido historicamente saqueados, mas também são fontes de resistência e transformação. O presidente da Internacional da Educação, Mugwena Maluleke, da África do Sul, é um símbolo dessa união.

A promoção de campanhas globais para aumentar os investimentos em educação pública tem sido um movimento particularmente relevante no contexto de desafios globais com guerras e crises, imposto pelas direitas em nossos países.

A colaboração com organizações internacionais como a UNESCO e as Nações Unidas resultou em 59 recomendações para melhorar o sistema educacional mundial. Nosso foco é reivindicar mais investimentos públicos em educação.

Mátria: O que a educação pública representa nesse cenário de crises?

Sonia: Ela é um pilar de esperança e transformação. Defendê-la significa lutar por um futuro mais justo, inclusivo e solidário. A educação é um direito humano inalienável, e nós continuaremos na linha de frente dessa luta.



A “noite escura” sobre a Argentina

O cenário político na Argentina, sob a presidência de Javier Milei, tem gerado grandes desafios especialmente para a educação pública no país. Sonia Alesso, que é argentina, denuncia os cortes drásticos no orçamento educacional, com implicações sérias para a educação básica e superior.

"O presidente Milei é inimigo da educação pública", afirma, destacando que o governo anulou as negociações coletivas de docentes e violou a Lei de Financiamento Educacional, que garante um investimento mínimo de 6% do PIB para a educação. “O orçamento de 2025, apresentado em setembro de 2024, ‘desfinancia’ não só as escolas básicas, mas também as universidades. É algo monstruoso”, declara.

Sonia menciona a série de cortes promovidos pelo governo como as bolsas escolares para crianças, jovens e estudantes universitários e todos os programas de formação docente. “Reduziram os salários dos docentes tanto da educação básica quanto do ensino superior”, além dos cortes nos programas de financiamento para pesquisa e a retirada dos fundos das escolas técnicas. Por fim, disse, “cortaram os investimentos em infraestrutura escolar, construção de escolas e universidades”.

A luta das universidades públicas - Na Argentina, as universidades públicas têm sido um alvo constante de ataques. "As universidades são públicas, gratuitas e autônomas", afirma Sonia, lembrando o impacto histórico da Reforma Universitária de Córdova, também conhecida como Reforma Universitária de 1918, pioneira na América Latina. O movimento deu direito a todos fazerem universidade sem concurso e é considerado uma das mais importantes bandeiras do processo estudantil latino-americano.

Hoje, na Argentina, 60% dos estudantes das grandes cidades são de primeira geração universitária, e em áreas mais pobres esse número chega a 70% ou 80%. Isso em um país que historicamente teve uma classe média muito grande, significou uma oportunidade de ascensão social, pesquisa e investimento. “Portanto, é um ataque frontal”, resume Sônia.

A resistência cresce nas ruas – Frente às tentativas de ‘desfinanciamento’, a resistência cresce, na avaliação de Alesso, especialmente em momentos de forte dificuldade econômica. "O salário dos docentes está abaixo da linha da pobreza, e a classe média está sofrendo brutalmente com o ajuste", diz, apontando para a crise social que acompanha os cortes.

A tentativa de privatização do ensino superior é um dos objetivos do governo do atual presidente Argentino, o que tem gerado resistência em todo o país. O movimento sindical, estudantes e reitores universitários se uniram para enfrentar as ameaças, com mobilizações e reuniram milhões de pessoas nas ruas. "A primeira mobilização contou com 1,2 milhão de pessoas, e a segunda mais de 2 milhões. Isso mostra a força da resistência", ressalta.

Alesso acredita que, em 2025, a resistência irá aumentar ainda mais, e a articulação entre a reação popular e a política será essencial. "O povo argentino não vai aceitar esse projeto político da direita", afirma com confiança na reação das ruas.  “Tenho esperança de que possamos sair dessa ‘noite escura’ que essa situação nos trouxe”, conclui.

Mulheres, presentes! Gênero, Direitos e Educação na América Latina

A defesa dos direitos das mulheres e a promoção de políticas de gênero têm sido prioridades no trabalho da Internacional da Educação para a América Latina. Sonia Alesso destacou especialmente a recente conquista histórica da organização, quando, pela primeira vez “temos uma presidenta mulher e duas vice-presidentas na Internacional para a América Latina”.

Um marco que, segundo ela, reflete o compromisso com a formação e o fortalecimento da liderança feminina. “Algo fundamental para avançar nas questões de gênero no contexto educacional”, avalia.

O fortalecimento da política de gênero - Com um histórico sólido em políticas de gênero, a IE tem investido consideravelmente na formação de novas lideranças femininas. "A CNTE tem sido uma base forte nesse trabalho, com lideranças como Fátima Silva e Estela Maldonado, que impulsionaram as políticas de gênero na região", afirma Sonia.

Esforços que resultaram em avanços significativos, como a formação de equipes em países onde a participação feminina nos sindicatos era quase inexistente. "É um exemplo para outras regiões do mundo", afirma, destacando o trabalho da ‘Rede de Mulheres’ na luta pela inclusão das mulheres na vida sindical e política.

Além disso, a IE promove encontros regionais, eventos de formação política e debates sobre o papel das mulheres nas diversas esferas do movimento sindical e educacional. "As mulheres não falam apenas de gênero, mas de uma transformação mais ampla na sociedade", diz Sonia, reforçando o impacto dessas ações.

 O Combate ao Assédio e a Luta Feminista - Dentro das lutas da Internacional da Educação, um tema crucial é a defesa da Convenção 190 da OIT que, juntamente com a Recomendação 206, trata das primeiras normas internacionais do trabalho a fornecer uma estrutura comum para prevenir, remediar e eliminar a violência e o assédio no mundo do trabalho, incluindo a violência de gênero.

"Conseguimos apoio de vários países da América Latina e do mundo para essa resolução", afirma. Ela destacou a importância do documento em ambientes de trabalho, especialmente nas escolas. "É um problema fundamental que nós, mulheres, enfrentamos", constata.

A luta feminista tem sido central nas conquistas da resolução. Sonia vê a crescente participação das mulheres no mercado de trabalho como um reflexo da busca por autonomia e desenvolvimento profissional, algo que ainda é visto com resistência por governos de direita. "Muitas mulheres chegaram à política graças à luta dos feminismos", lembra.

Segundo Alesso, a luta é importante e gradual, envolvendo temas como a legalização do aborto, a educação sexual integral, a possibilidade de as mulheres decidirem sobre seus corpos, pela defesa da diversidade no mercado de trabalho e da autonomia das mulheres. “O que resulta em cidadãos e cidadãs mais conscientes e felizes - mais conscientes de seus direitos e mais felizes por poder viver uma vida plena”, conclui.