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Educação antirracista na prática

Passados mais de 20 anos desde a sanção da Lei 10.639/2003 , a legislação ainda enfrenta dificuldades para ser aplicada nas salas de aulas

Publicado: 07 Março, 2025 - 16h04

Escrito por: Redação | Editado por: Redação

 

A vontade de compartilhar seu aprendizado com mais pessoas foi o que motivou a professora e escritora carioca Lavini Castro a criar a Rede de Professores Antirracistas. Em 2020, quando havia finalizado seu mestrado sobre Educação para as Relações Étnico-Raciais, sentiu o despertar de uma nova missão na promoção de uma educação básica mais diversa. Dessa vez, que mais educadores/as brasileiros/as se sentissem encorajados/as e sensibilizados/as a difundirem uma educação antirracista nas salas de aulas de suas escolas. 

“A rede surgiu próximo ao início da pandemia de Covid-19. Eu tinha acabado de finalizar o meu mestrado e queria compartilhar tudo aquilo que tinha adquirido de conhecimento em dois anos de estudo… Em minha pesquisa sobre o entendimento dos entraves que o fundamentalismo religioso causa dentro da dinâmica de aprendizagem sobre a Cultura e História Afro-Brasileira, estudei autores negros do universo de relações étnico-raciais, e aprendi tanta coisa que queria compartilhar com meus colegas”, conta.

As mudanças trazidas pelo período de isolamento na época, principalmente pelo novo modelo de convivência e relacionamentos virtuais, não impediram que o projeto saísse do papel. Pelo contrário, deram ainda mais gás para a educadora, que já se identificava com as redes sociais, construir uma rede que pudesse alcançar professores de diferentes lugares do país.  

“Nesse período, a gente passou a viver uma cultura online, e eu comecei a compartilhar  meu trabalho por meio de transmissões ao vivo nas redes sociais e em cursos virtuais. Assim, foi surgindo a Rede de Professores Antirracistas que temos hoje”, relata. 

Mobilização 

Segundo Lavini, a Rede funciona como um coletivo de professores que se identifica com a perspectiva de uma educação mais diversa e antirracista. São trabalhadores que almejam que as práticas pedagógicas dentro das escolas passem a contemplar temas como raça, racismo, desigualdades, justiça social, bem como a valorização da história e cultura afro-brasileira.

“Nos organizamos em rodas de conversa agendadas e em videocast com os professores, transmitido pelo YouTube, para discutir as necessidades, limites e ações desenvolvidas no chão da escola para as relações étnico-raciais”, explica.

A Rede hoje produz desde materiais pagos e gratuitos. “Lançamos um curso inteiramente gratuito sobre como desenvolver uma educação antirracista na prática. Em outra oportunidade, junto com a Secretaria Municipal de Educação de Cabo Frio (RJ), realizamos uma formação com professores com palestras”, conta. 

O outro lado da história 

Para a professora Lavini, trabalhar os temas étnico-raciais na educação é mais do que apenas a garantia da diversidade. É também uma forma de despertar o senso de pertencimento, orgulho entre os estudantes, promovendo uma visibilidade positiva sobre grupos de pessoas negras, indígenas e quilombolas, historicamente marginalizados e que tiveram seus passados silenciados e reescritos sob outros contextos, como a escravidão, por exemplo.

“Não são contadas as outras partes da história em que esses grupos também existiram e contribuíram para a nossa sociedade... Trabalhar essa temática de um jeito que funcione é como um despertar para entender as necessidades de boas relações raciais... é importante para que as nossas crianças cresçam entendendo a sua representatividade de participação nessa sociedade, vão entender o seu pertencimento positivo, terão orgulho de pertencer à história desses grupos”, avalia.

“É uma forma de fazer com que a história reconheça os problemas causados em uma determinada época e que deixaram, infelizmente, um legado do racismo na nossa sociedade”, completa.

Sancionada em janeiro de 2003, a regra altera a legislação máxima da educação brasileira, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Um marco importante no combate ao racismo e na luta pelos direitos do povo negro, mas que enfrenta dificuldades na sua aplicação.

Entraves e preconceitos

“Ainda há muitos desafios”, avalia Lavini sobre a aplicação da lei. 10.639/03. “Tem muita gente que ainda acredita no mito de uma democracia racial, que tudo é questão de mérito, ‘se eu correr atrás, eu consigo’, e que não compreendem que existe uma estrutura socioeconômica que atrapalha muitas pessoas a mudarem a sua condição socioeconômica”, destaca. 

Outros fatores, como conservadorismo e fundamentalismo religioso, também são aspectos que têm dificultado a promoção de um ensino mais diverso nas escolas. 

Em novembro de 2024, uma professora da rede pública do Distrito Federal foi exposta nas redes sociais de um parlamentar distrital e acusada de estar cometendo um crime ao lecionar a disciplina optativa de História e Cultura Afro-Brasileira com seus estudantes. 

Em vídeo, o deputado ainda afirma ter denunciado a educadora ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), por “fazer rituais de magia em sala de aula”. “Incute na cabeça das crianças uma religião afro e as leva a falar, nomes e cultuar essas entidades. Isso é um crime”, disse na postagem.

Em resposta, a diretoria da escola divulgou uma nota de repúdio contra as falas do deputado, afirmando serem acusações injustas contra o trabalho da professora. A direção reforçou o apoio integral ao trabalho realizado pela educadora e enfatizou o seu compromisso com a educação inclusiva e respeitosa. 

“A disciplina faz parte do catálogo oficial de disciplinas da SEEDF e visa promover o respeito e o reconhecimento das contribuições culturais e históricas desses povos na formação do Brasil. É essencial que os alunos recebam uma educação plural e que respeitem a diversidade cultural e religiosa”, explicou a escola.

“Não toleramos qualquer forma de preconceito, inclusive a intolerância religiosa. Nossa escola permanece um espaço de promoção do respeito às diferenças e de aprendizado livre de discriminação”, salientou.

A gestão da instituição também protocolou uma denúncia contra o parlamentar na Comissão de Educação da CLDF.

“Muitos educadores querem falar sobre capoeira, umbanda, candomblé dentro da escola sem ser em um sentido de conhecimento religioso, mas sim como aspectos que fazem parte da cultura brasileira, para que se tenham outras formas de visão sobre o mundo e do que foi passado pelos povos africanos e pelos indígenas... então é difícil quando precisamos falar de diversidade e tem gente que não quer que o assunto seja abordado, aprendido e discutido”, afirma Lavini. 

Educação antirracista na prática

Apesar de a Lei 10.639/2003 não incluir a educação infantil entre as etapas obrigadas a ter o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira no currículo escolar, a professora Lavini defende que esse seja um tema naturalizado desde os primeiros anos do ensino com as crianças e amadurecido conforme as etapas da educação básica. Ela compartilha, ainda, as diferentes formas de trabalhar um ensino mais plural na rotina pedagógica, sem que este tema fique restrito a uma única disciplina.

Para ela, uma vez que a educação para as relações étnico raciais é trabalhada nas escolas, abre-se a possibilidade de questionar as ausências e os problemas que existem na sociedade.

"O próprio racismo que existe na sociedade reverbera dentro das escolas, então, quando a gente ensina a história e cultura afro-brasileira para impactar os estudantes de maneira positiva sobre os elementos desses grupos, fazemos com que reverbere naquela sala de aula uma nova visão e memória, de valorização, de existência e contribuição, de quebra de estereótipos e os silêncios que existem", diz.

"Projeta um futuro onde todas as pessoas nessa diversidade étnico-racial se vejam representadas, atuantes e se enxerguem como sujeitos participativos da história que estamos vivendo", considera.

Para cada etapa escolar, abordagem distintas

“Um professor com intencionalidade pedagógica para promover a mudança é capaz de criar um modelo ideal de como poderia ser a nossa sociedade”, lembra Lavini, que apresenta, a seguir, algumas recomendações específicas de como abordar o antirracismo em sala de aula em diferentes etapas da vida escolar. 

Educação Infantil: Nessa etapa, a educadora ressalta a importância de que já seja iniciado um trabalho de reconhecimento positivo das histórias afro-brasileiras, quilombolas e indígenas. Com o estímulo de imagens, histórias e elementos que remetem à cultura desses grupos. O intuito é naturalizar para as crianças, desde cedo, a diversidade do mundo em sua volta.

"Ela (a criança) vai se acostumar com a existência de uma boneca negra, com a existência de um ritmo musical, de elementos, jogos e brincadeiras. Então, a contação de histórias, contato com brinquedos e música dentro da educação infantil é uma boa maneira de implementar a lei nessa faixa etária", informa. 

Ensino Fundamental: A partir do ensino fundamental, deve-se aliar a contação de histórias à introdução de problematizações que estimulem os estudantes a questionarem o porquê do problema existir no nosso país e por que não aprendemos tanto sobre.

Ensino Médio: Já no ensino médio, a abordagem pode ir mais além, com a promoção de debates e pesquisas, por exemplo. Nessa etapa, Lavini recomenda que os estudantes passem a gerar a sua própria opinião a respeito do racismo.