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Educação | Quando a necessidade é a mãe da evasão

Publicado: 28 Fevereiro, 2023 - 23h04

Escrito por: CNTE

 Os relatos de quem abandonou os estudos e os desafios de educadores e governantes para sanar esse problema

Na família de Maria de Jesus da Silva, de 36 anos, a mesma história se repete há gerações. Semianalfabeta, negra e nordestina, ela precisou abandonar os estudos porque engravidou e se casou ainda adolescente. Mesmo tentando construir um outro futuro para suas quatro filhas, duas já seguiram o mesmo caminho - traçado, principalmente, pela falta de assistência do poder público, que parece não chegar até a comunidade onde vivem, no Cabo de Santo Agostinho, a pouco mais de 30 quilômetros do Recife (PE). “Não queria que tivessem me seguido. Quero vê-las terminando os estudos e tendo uma profissão na vida, coisa que nunca tive”, desabafa Maria.

Uma de suas filhas, Fabiana Maria, de 18 anos, estava na 2ª série do ensino médio quando engravidou de Sophia, hoje com um ano. Ela tentou ir às aulas, nos primeiros meses, mas os enjoos frequentes tornaram os estudos uma missão impossível. “Passei os nove meses vomitando”, contou. Fabiana ainda pensou em voltar, após o parto, mas na fase de amamentação o peito enchia de leite constantemente, provocando dores e vazamentos. Para piorar a situação, o colégio estadual mais próximo fica a mais de 40 minutos de caminhada da sua casa. Ela mora na Vila Nova Tatuoca, que é formada famílias expulsas da ilha que tinha o mesmo nome. São 75 casas construídas e entregues, em 2014, pelo Porto de Suape para abrigar essas famílias. No entanto, os serviços não acompanharam a chegada delas ao local, que conta apenas com uma escola de ensino
fundamental nas redondezas.

A distância foi o motivo pelo qual a irmã, Eliane Santos, de 21 anos, abandonou os estudos na 1ª série do ensino médio, assim como muitos outros na comunidade, que
enfrentam uma burocracia para se locomover até a instituição de ensino. Isso porque, segundo ela, os cartões do passe estudantil demoram para ser liberados e ainda mais para
recarregar. “Deixei a escola por ter perdido o cartão. Porque tem que ir no (sic) colégio, dar o nome, esperar, depois recebemos e esperamos mais 30 dias para ele carregar e usarmos”, explica Eliane. Sem a gratuidade custaria, no mínimo, R$ 8,20 para ir e voltar todos os dias, ou pouco mais de R$ 180 por mês – considerando que a renda das famílias da região se limita, muitas vezes, a um salário-mínimo de R$ 1.302 ou ao Bolsa Família, de R$ 600.

As duas foram retratadas em uma pesquisa realizada pelo Centro das Mulheres do Cabo (CMC) que, com o apoio do Fundo Malala, traçou o perfil de 96 adolescentes e
jovens mulheres que estavam fora da escola na cidade. Para a coordenadora do trabalho Cássia Jane, chamou atenção o fato da maioria das entrevistadas ter parado de estudar por problemas sociais e por não haver um processo de procura pelo município ou estado. “As gestões das escolas que consultamos diziam que não tinham meninas fora das escolas e que já estavam fazendo busca ativa. Não havia registro da saída delas”, conta Cássia. “Elas vivem um ciclo de repetição, por passarem pelo mesmo processo que as mães e, sem acesso à educação, acabam reproduzindo também o ciclo de pobreza”, finaliza a pesquisadora.

As jovens retratadas pelo CMC fazem parte de um problema que atinge 2 milhões de meninas e meninos, de 11 a 19 anos, que deixaram a escola no Brasil sem terminar a
educação básica - 11% do total da amostra -, de acordo com um estudo feito pela Inteligência em Pesquisa e Consultoria (Ipec) para o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). O problema tem raízes profundas e é calcado na falta de garantia dos direitos que facilitariam a permanência nas instituições, mas foi agravado em decorrência da pandemia da Covid-19.

Para Anna Helena Altenfelder, presidente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), esse problema ocorre, sobretudo, pela carência de um programa nacional que possa trazer uma unificação ao ensino em todas as partes do país. “O governo federal não é responsável direto pela educação básica, mas tem um papel importante, que está na Constituição, que é coordenar a política nacional de educação, técnica e financeiramente, aos estados e municípios, e não cumpriu”, assevera. “Assim, as estratégias dos municípios foram muito desiguais durante a pandemia. Alguns conseguiram manter contato com a escola e com os alunos, e outros tiveram políticas incipientes nessa direção”, conclui a presidente.

Dos 11% de jovens brasileiros, que a pesquisa elencou, 4% são da classe A e B, e 17% da D e E. Além disso, 99% deles estavam frequentando escola pública antes de deixá-la. A justificativa para o abandono, que mais se repetiu na pesquisa, foi a necessidade de “trabalhar fora” (48%), seguida por “não conseguir acompanhar as explicações ou atividades” (30%). Os dois motivos foram os que fizeram Henrique Farias*, de 16 anos, entrar nas estatísticas. Nos primeiros meses da quarentena, em 2020, a escola que frequentava, em São Paulo (SP), fechou as portas e passou um mês sem oferecer qualquer conteúdo programático.

No começo, ensino à distância se resumia à disponibilização de questões na internet, para serem resolvidas sem qualquer suporte. Três ou quatro meses depois, começaram,
de fato, as aulas on-line, em um ritmo que supunha equivocadamente que os alunos haviam aprendido os conteúdos do início do ano. “Enquanto os professores estavam
no 200, nós estávamos no 50”, relata o jovem. “Não dava para acompanhar. Saí da escola na segunda aula online. Desisti desse estilo de aprendizado porque não estava acompanhando, só sofrendo pressão psicológica e estresse”, desabafa Henrique, que resolveu então ir trabalhar com o pai como lanterneiro

De volta para o futuro

Felizmente, Henrique é um dos exemplos que foram resgatados com o fim do ensino remoto – já que o Brasil chegou a ter 5,5 milhões de crianças e adolescentes sem acesso à educação, em 2020. Ele voltou a estudar, em 2022, inspirado pelo exemplo que vem de dentro de casa: a irmã, formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói (RJ). “Meu pai, que é autônomo e dependente do trabalho braçal, sempre disse para eu estudar e usar minha irmã como exemplo. Então, me apeguei a isso”, comemora.

Agora, o jovem estuda à noite e elogia a didática. Ele percebe que os professores “saem mais da caixa”, em relação aos seus anteriores. “Nessa escola, os professores sentam, conversam e depois escrevem na lousa. Não apenas escrevem várias coisas na lousa para a gente copiar”, comenta. “Também não tive grandes dificuldades para relembrar. Minha professora falou que, por eu ter ficado todo esse tempo parado, eu ainda sou um bom aluno”. Ele conta que, no começo, tentou conciliar trabalho e estudo, mas acabava chegando exausto ao colégio, o que o fez priorizar os livros. Mesmo assim, os dois anos que perdeu ainda o chateiam. “Desanima, porque estou fora da idade.

Quando perguntam quantos anos eu tenho, evito falar, porque é chato para mim”, desabafa Henrique. Anna Altenfelder aponta essa desmotivação, causada pela distorção entre idade e série, como um dos fatores históricos da evasão, e que precisa ser combatida com estratégias para recuperar o aprendizado perdido pelo tempo fora da sala de aula. “Não é passar os alunos de ano sem eles aprenderem. Mas garantir estratégias para recuperar a aprendizagem. Isso não acontece. Porque, as políticas de progressão não foram
implementadas de maneira completa”, afirma a presidente do Cenpec. “Assim, o aluno entra na escola, que não garante o aprendizado, começa a repetir ou progride sem aprender, e abandona a escola. É uma perversidade na dinâmica (educacional) que se acirrou na pandemia”, completa.

No Cabo de Santo Agostinho, a estratégia para combater o ciclo tem sido a instalação de um Comitê Intersetorial de Enfrentamento contra Evasão Escolar de Meninas, criado junto à prefeitura, para que diferentes secretarias pensem juntas em como facilitar o acesso às aulas. “Uma secretaria pensa em como pode evitar que o cartão de transporte atrase, e outra em instituir educação sexual para impedir gravidez precoce, por exemplo”, explicou a pesquisador Cássia Jane. O CMC, por sua vez, vem fazendo uma
busca ativa pelas alunas evadidas que foram identificadas. Além de estimular o retorno, fornece vales-passagem para que possam ir até a instituição fazer a matrícula.

A iniciativa fez com que Fabiana e Eliane, as filhas de Maria de Jesus, aceitas sem voltar às aulas em 2023, o que inspirou a vizinha, Priscila Maria da Silva, de 26 anos,
a seguirá exemplo, após mais de 10 anos sem entrar em uma sala de aula. “Entrei na escola tarde, com 10 anos, e parei na 3ª série do fundamental, porque fiquei grávida e tive que trabalhar para sustentar meus filhos, porque não tinha condições de pagar uma creche”, conta Priscila. “Aprendi a ler e a escrever um pouquinho, mas não o suficiente. Agora, tenho condições de estudar, porque meu esposo vai ficar com eles à noite”, completou. Ela espera dar início ao sonho de ser bombeira.

Para a presidente do Cenpec, a garantia da permanência das crianças e adolescentes na rede de ensino deve ter como prioridade a viabilização do Plano Nacional de Educação, uma das promessas de governo do presidente Lula (PT). Com ele, será possível implementar medidas como a criação de um sistema nacional de educação, que defina as responsabilidades de cada ente público, o financiamento para educação e a valorização dos professores, com aumento de salário, o piso, a formação continuada e condições concretas de trabalho. “Manter jovens na escola é importante para os mais vulneráveis. Para a sociedade como um todo, também. Educação é necessária para pensarmos em uma sociedade justa, igualitária e economicamente desenvolvida”, encerra Anna.

*O nome de Henrique é fictício para manter sua identidade preservada

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