MENU

Encarte teórico: A reforma da previdência (PEC 287) e os impactos para as mulheres trabalhadoras: a igualdade de direitos é um...

Publicado: 07 Março, 2017 - 13h43

Escrito por: CNTE

Thamires Silva, técnica do Dieese, subseção da Apeoesp. Mestre em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP)

O quadro de ajuste fiscal que visa instaurar medidas austeras de longo prazo no país desenha um futuro incerto para as políticas públicas. O perigo reside nas propostas de reequilíbrio das contas do Estado que tramitam ligeiras no Congresso Nacional, já que parte delas está sujeita ao desmonte da Seguridade Social pactuada democraticamente na Constituição de 1988. O cerceamento dos direitos elementares que visam assegurar uma vida digna aos cidadãos(as) brasileiros(as) aponta para uma dura realidade findada nos modos de sobrevivência de uma população exposta ao desemprego e que carece de atendimento nos serviços públicos.

Dessa forma, as mudanças pensadas para conter o gasto público que superou a margem de receitas somente a partir de 2014 no contexto de crise econômica não priorizam a retomada do crescimento e via de regra oneram diretamente a classe trabalhadora em maneiras e intensidades distintas, considerando a heterogeneidade que marca o nosso mercado de trabalho. 

O eixo da reforma enquadra-se nos seguintes aspectos:

I) Extinção da aposentadoria por tempo de contribuição;

II) Estabelecimento de idade mínima de 65 anos para acessar o benefício, independente das especificidades relativas às condições socioculturais e biológicas entre homens e mulheres, à diferenciação do trabalho no campo e na cidade, ao caráter do setor público e do setor privado, à realidade da profissão do ensino no magistério;

III) Mudança do cálculo cujo efeito é a redução do valor dos benefícios previdenciários em geral;

IV) Proibição de acúmulo de benefícios, como pensões e aposentadorias; e 

V) Desvinculação dos benefícios assistenciais e pensões do salário mínimo.

Sobre a estrutura social e sua dinâmica que vai além da perspectiva de déficit, a qual predomina os meios de comunicação de massa e justifica as iniciativas arbitrárias do governo de Temer, o que não podemos perder de vista é que qualquer modificação de regra que pretenda constranger direitos deve corresponder à configuração atual da sociedade e, nesse sentido, o esforço de aplicar uma regra única para todos, oculta características múltiplas que incorrem sobre as condições de vida no território brasileiro.

Embora seja difícil mensurar o impacto da PEC 287 sobre a Seguridade Social (que abrange incluindo Previdência Social, Assistência Social e Saúde), as consequências diretas de sua aplicabilidade na vida das pessoas não podem ser subestimadas. Por isso, ao contextualizar a reforma da previdência lançamos luz sobre o panorama social, o qual revela principalmente velhos determinantes que reafirmam o estágio inferior das mulheres em relação aos homens em termos de
equidade de gênero.

Paralelamente às mudanças prenunciadas pela reforma – que nos leva a perceber o processo de inserção da mulher na sociedade brasileira e os motivos pelos quais se faz necessário regular as relações sociais para estabelecer um patamar justo que balize as diferenciações existentes entre os sexos – a singularidade da profissão docente remete a identidade de gênero que associa a função do professor(a) ao conjunto de símbolos e significados que muitas vezes são responsáveis por impor no espaço escolar, a desvalorização do trabalho feminino.

A partir desses pontos, nosso objetivo é discutir as implicações da reforma da previdência sobre a atividade do magistério, uma profissão que possui forte identificação com o trabalho da mulher e constitui laços sociais que muitas vezes exprimem a discriminação reproduzida na família, no trabalho e consequentemente no espaço da escola. Nesse aspecto, a PEC 287 agrava as condições de vida da mulher educadora, prejudicando o seu acesso aos direitos universais de cidadania.

A PREVIDÊNCIA ENQUANTO DIREITO SOCIAL E O SEU DESMONTE

A Previdência Social cumpre papel inscrito na Constituição de 1988 e integra a estrutura de bem-estar social do Brasil. Conforme o Anuário Estatístico da Previdência Social (AEPS 2015) e o Boletim Estatístico da Previdência Social (BEPS, nov.2016), no conjunto de espécies de benefícios previdenciários e assistenciais existentes para as mulheres, está previsto o saláriomaternidade que em 2015 beneficiou mais de 1 milhão de mulheres que tiveram filho(a) (parto ou adoção),
válido também para ocorrências de aborto, cujo valor médio mensal foi de R$ 954,78. No caso do auxílio-reclusão, 61% dos beneficiários dependentes de baixa renda são do sexo feminino e o valor médio mensal do benefício foi de R$ 1.105,02. A pensão por morte beneficiou, somente em 2015, mais de 271 mil mulheres, equivalente a 74% do total de dependentes abrangidos por este benefício (365 mil pessoas) com o valor médio de R$ 1.390,05.

O amparo assistencial aos portadores de deficiência e ao idoso é conhecido como Benefício da Prestação Continuada previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (BPC/LOAS). Em 2015, mais de 2,3 milhões de portadores de deficiência ativos receberam o auxílio, sendo 84% do sexo feminino. O último valor médio mensal foi de R$ 880,06. Já o valor médio do salário pago aos idosos acima de 65 anos que totalizaram quase 2 milhões de beneficiários em 2015 foi de R$ 902,33. Novamente, a participação das mulheres foi majoritária, representando 58,5% do total dos assistidos por esse benefício.

O Regime Geral de Previdência Social (RGPS) que atende os contribuintes do INSS beneficiou 4 milhões de trabalhadores no ano de 2015, sendo 27,5% relativos às aposentadorias. Proporcionalmente, pouco mais de um terço das mulheres receberam até um piso previdenciário equivalente a um salário mínimo. De acordo com as regras atuais, a aposentadoria por idade que estabelece 65 anos para homens e 60 para mulheres requer contribuição durante 15 anos.

Já nos Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS), foram contabilizados em 2015, 7,6 milhões de servidores  distribuídos nos três níveis: federal, estadual e municipal. De acordo com as regras vigentes, a idade mínima para o servidor se aposentar é de 60 anos de idade e 35 anos de contribuição, no caso dos homens, e 55 anos de idade e 30 anos de contribuição, no caso das mulheres. O cumprimento dos limites de 10 anos de serviço público e 5 anos de tempo no cargo efetivo vale para aposentadoria por idade.

Em ambos os regimes, a aposentadoria por tempo de contribuição exige que os homens contribuam durante 35 anos e as mulheres 30 anos. Nesse caso específico, a PEC 287 pretende criar a idade mínima como um requisito a mais para aqueles(as) que já alcançaram o tempo de contribuição, mas de acordo com a expectativa de sobrevida que aponta para o envelhecimento populacional e a redução da natalidade, poderiam manter-se ativos no mercado formal de trabalho. Na prática, a aposentadoria por idade mínima (65 anos) associada ao tempo de contribuição (mínimo de 25 anos) obriga a população a trabalhar por mais tempo para continuar financiando a previdência, ao passo que reduz a duração de tecebimento do benefício por parte do cidadão (ã).

As proposições contidas no texto incluem as regras de transição que dispensa homens com idade superior a 50 anos e mulheres acima dos 45 anos das condições gerais previstas, exigindo, contudo, o cumprimento de um pedágio de 50% a mais sobre o tempo que restaria para completar o mínimo de contribuições pelas regras vigentes. Isso significa que dos 70,1 milhões de trabalhadores contribuintes do RGPS, 56,6 milhões serão afetados com as novas regras. Trabalhadoras de até 44 anos e que contribuem para a previdência somam 22,6 milhões (AEPS, 2015). 

A diferença de 5 anos entre homens e mulheres para acessar os benefícios dos regimes previdenciários, tanto por tempo de contribuição quanto por idade, leva em conta a sobrecarga imposta às mulheres em relação às responsabilidades familiares, o que inclui a realização de afazeres domésticos e cuidados com crianças e idosos, tarefas que duplicam ou até triplicam a jornada de trabalho, mas que não são computadas para fins de remuneração. De acordo com o estudo  encomendado pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – antes, ligada à Presidência da República e com a MP 726/2016 passou a se vincular ao Ministério da Justiça e Cidadania, intitulado ‘Os Direitos das Mulheres na Legislação Brasileira Pósconstituinte’, argumenta-se “que o Estado não assume a oferta de equipamentos de educação infantil, bem como outros equipamentos a exemplo de restaurantes populares e lavanderias públicas o que poderiam aliviar a dupla jornada das mulheres; e que, no âmbito privado, os homens não dividem as tarefas domésticas com as mulheres” (CFEMEA, 2006, p. 29).

A divisão das responsabilidades familiares entre trabalhadores de sexos opostos está prevista na Convenção 156 da OIT. Contudo, a promoção da igualdade de oportunidade nas relações de trabalho e no espaço privado ainda está distante da realidade das brasileiras, como mostra a Síntese de Indicadores Sociais (2015) do IBGE que revelou que das 42,4 milhões de mulheres ocupadas, 90,7% realizavam atividades no âmbito domiciliar e de cuidados com a família, ao passo que apenas 51% dos homens ocupados declararam realizar afazeres domésticos. Esse dado mostra o acúmulo de atividades sobre a rotina da mulher e não uma distribuição equânime de tarefas. 

Outro dado que chama atenção para o perfil ocupacional feminino é sobre o trabalho doméstico, regulamentado pela EC 72/2013 e posteriormente pela LC 150/2015, já que 92% da força de trabalho são compostas por mulheres. Embora o percentual de contribuição previdenciária tenha aumentado significativamente após a recente formalização, o trabalho doméstico ainda carrega o ônus por ter sido considerado ocupação inferior em relação ao trabalho formal no que concerne
aos direitos trabalhistas e previdenciários ao longo da história.

Ademais, as condições desfavoráveis vivenciadas pelas mulheres no mercado de trabalho no que se refere  aos postos de emprego mais precários, a desigualdade salarial, a maior informalidade e a rotatividade são acentuadas em tempos de recessão econômica, quando as consequências danosas para a classe trabalhadora em termos de desemprego e queda da renda ficam mais latentes.

Ainda que os indicadores da PNAD Contínua (3º trimestre/2016) tenham mostrado que as mulheres são maioria entre as pessoas em idade de trabalhar (52,1%), no grupo de pessoas ocupadas houve predomínio de homens em 57,2%. Na mesma direção, a população desocupada foi em sua maioria do sexo feminino (50,1%). Já a população fora da força de trabalho foi composta por 65,5% de mulheres. No aspecto da renda, a lacuna é visualizada pela diferença salarial que recai
sobre a mulher trabalhadora cujo rendimento médio advindo de trabalho informal foi 34,8% inferior ao do homem, situação não muito diferente em relação ao rendimento médio advindo de trabalho formal que foi 23,1% menor que o do sexo masculino.

É importante destacar também que em 2014, o nível de ocupação da população idosa, ou seja, de pessoas de 60 anos ou mais de idade, foi de 29,1% para os homens e de apenas 18,9% para as mulheres, apontando a necessidade de garantir uma fonte de renda previdenciária, sobretudo para as mulheres que a partir dos 50 anos de idade encontram dificuldades muitas vezes instransponíveis no mercado de trabalho (SISIBGE, 2015).

Diante da realidade do trabalho e da sociabilidade que reproduz desigualdades, muitas delas baseadas no gênero, coube à legislação brasileira estabelecer regras compensatórias para assegurar o bem estar-social da mulher. Nesse sentido, a regra que permite à mulher se aposentar antes do homem é fundamental para assegurar condições dignas de vida, visto que a dinâmica do mercado é excludente do ponto de vista da colocação e da empregabilidade em idade madura.

A REFORMA DA PREVIDÊNCIA E A CARREIRA DOCENTE NO MAGISTÉRIO

A dimensão jurídica que assegura regras distintas de acesso à previdência social entre homens e mulheres é a mesma que permite aos(as) professores(as) da educação básica a aposentadoria antecipada. Por ser considerada profissão penosa (§ 5º do art. 40 da CF), educadores do magistério podem se aposentar aos 60 anos (homem) e aos 55 (mulher). No caso do(a) professor(a) do RGPS, é possível requerer a aposentadoria por tempo de contribuição para os homens que completarem 30
anos de contribuição e para as mulheres que alcançarem 25 anos de contribuição. Já o(a) professor(a) do RPPS pode requerer aposentadoria por tempo de contribuição aos 55 anos de idade para o homem e 50 anos de idade para a mulher.

Sabendo que a PEC 287 elimina a diferença de idade entre homens e mulheres, ao uniformizar as condições de acesso também para os profissionais do magistério penaliza duplamente os direitos da professora, primeiramente por atingir todas as pessoas do sexo feminino e, em segundo lugar, por extinguir a aposentadoria especial do magistério. No Brasil, existem 2,1 milhões de professores atuantes na educação básica e apenas 435 mil são do sexo masculino. Esse universo de maioria feminina é confrontado cotidianamente pela necessidade de formação continuada, plano de carreira com valorização do professor(a), e priorização de maiores investimentos na educação como um todo. 

Dessa forma, o modelo de previdência que está sendo desenhado mostra-se irredutível no que diz respeito à identidade do trabalho na educação básica que é constituído em quase sua totalidade por mulheres docentes em praticamente todas as etapas do ensino básico.

O conteúdo da PEC 287 ainda apresenta a regra de transição aplicada para o professor que é considerado segurado especial valerá para homens que tiverem idade igual ou superior a 50 anos e mulheres de 45 anos ou mais de idade, desde que se cumpra o pedágio que corresponde ao aumento de 50% do tempo que resta para alcançar o número de contribuições necessário para requerer o beneficio. Nesse caso, como mostra o Censo Escolar (2015), os professores da educação básica estão concentrados nas faixas etárias entre 30 e 49 anos. Uma observação breve permite afirmar que pelo menos 1,2 milhão de profissionais da educação básica serão impactados pela reforma, já que não estão enquadrados nas regras de transição.

Os perigos que ameaçam os direitos previdenciários apontam para retrocessos em relação às iniciativas do Poder Público articuladas com movimentos sociais, sindicatos, coletivos e sociedade civil em prol da cidadania e fim da discriminação. Dessa forma, ao nos debruçarmos sobre o perfil dos professores da educação básica, identificamos a desvalorização estrutural da carreira, o que coloca em evidência os problemas atuais da educação do país que permanecerão como entrave para o desenvolvimento socioeconômico e ampliação das oportunidades.

Os efeitos da função docente atuam sobre a saúde e sobre o processo de adoecimento das professoras na educação básica. Dentre as ocupações no mercado de trabalho, o ensino do magistério está entre as que mais corroboram com as condições degradantes de emprego. Com base no levantamento recente feito pelo DIEESE (2016), aproximadamente 400 mil professores possuem mais de um vínculo de trabalho, sendo que 25,3% dos professores de nível superior do ensino fundamental (1ª a 4ª série) recorreram ao segundo emprego. Uma das causas está relacionada à baixa remuneração que leva o professor a buscar formas alternativas de trabalho para agregar a renda.

O estudo ainda mostra que o adoecimento é uma das principais causas de afastamento do trabalho do professor. Em 2014, mais de 9 mil professores da educação básica ficaram afastados por doença ocupacional. Na maioria dos casos, os motivos estão associados aos transtornos mentais e comportamentais derivados de um ambiente de intensa pressão da escola com violência psicológica e um convívio nem sempre amistoso com os alunos.

A predominância de mulheres docentes no magistério é um dado que precisa ter o seu lugar na reflexão sobre a educação brasileira, considerando que a desvalorização da profissão é parte de um processo que carrega contradições inerentes ao papel histórico e cultural que formatou a identidade feminina nas escolas.

Nas palavras de Claudia Pereira Vianna (2001):
(...) o sexo da docência se articula com a reprodução de preconceitos que perpetuam práticas sexistas. O processo de feminização do magistério associa-se às péssimas condições de trabalho, ao rebaixamento salarial e à estratificação sexual da carreira docente, assim como à reprodução de estereótipos por parte da escola (VIANNA, 2001, p. 90).

Assim, a trajetória ocupacional ganha traços de feminização responsável por exercer sobre o imaginário coletivo, parâmetros morais que reforçam interações sociais baseadas no preconceito e, consequentemente, anulam a dignidade do trabalho da mulher em suas diversas facetas.

Nesse ponto, ao aprofundar as mazelas que atingem a docência a reforma da previdência impossibilita o desenvolvimento de políticas públicas que propiciem condições mais humanas para a existência das mulheres, já que impõe às professoras
uma única regra de acesso desconsiderando que as diferenças socioculturais, as quais minimizam o papel da mulher na sociedade, ainda persistem na estrutura familiar e no mercado de trabalho. Enquanto essa dinâmica injusta não for alterada, a PEC 287 representará um grande retrocesso na luta pela emancipação das mulheres a partir da ampliação de direitos e participação na arena pública.

Referências bibliográficas:
CFEMEA. Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea). Os direitos das mulheres na legislação brasileira pós-constituinte / Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), Almira Rodrigues (Org.), Iáris Cortês (Org.) -- Brasília: Letras Livres, 2006.

DIEESE. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Anuário da saúde do trabalhador. São Paulo: DIEESE, 2016. 

_______. PEC 287: A minimização da Previdência pública. Nota Técnica, Número 168 - Janeiro 2017 [online]. Disponível em www.dieese.org.br

VIANNA, Cláudia Pereira. O sexo e o gênero da docência. Cad. Pagu [online]. 2002, n.17-18, pp.81-103. Acesso em janeiro de 2017.

NERY, P. F. Reforma da Previdência: uma introdução em perguntas e respostas. Brasília:

Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/ Senado, Dezembro/2016 (Texto para Discussão nº 219). Disponível em: www.senado.leg.br/estudos. Acesso em 20 de dezembro de 2016.

>> Acesse o arquivo completo em PDF da revista Mátria 2017.