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Encarte teórico - Paulo Freire em dois contextos: tentativas de interdição das ideias e das práticas democráticas

Publicado: 02 Março, 2021 - 20h26

Escrito por: CNTE

ANDRÉIA NUNES MILITÃO - Doutora em Educação (UNESP)
Professora Adjunta da UEMS, Docente vinculada ao PPGEDu/FAED/UFGD, Líder do GEPPEF-UEMS/UFGD, Membro da diretoria da Anfope (2021-2023)

CRISTIANO AMARAL GARBOGGINI DI GIORGI - Doutor em Educação (USP)
Livre Docente - Unesp, Professor Titular aposentado - Unesp, Professor UNOESTE atualmente, Sócio fundador e ex diretor da ONG Ação Educativa, Autor de vários livros, capítulos de livros e artigos científicos. Orientou 10 doutorados e 32 mestrados. Orienta atualmente 2 doutorados e 6 mestrados.

Introdução
O artigo objetiva desvelar em dois contextos históricos, notadamente na ditadura civil-militar (1964 – 1984) e nos governos pós-golpe jurídico-midiático-parlamentar (2016 – 2020), porquê Paulo Freire tornou-se alvo de ataques de setores conservadores que procuraram interditar suas ideias e suas práticas.

Freire (o sujeito e a sua produção) foi interditado por setores conservadores no passado ditatorial levando-o ao exílio e à desconstrução de suas ideias com o encerramento de programas de alfabetização. No tempo presente, o movimento Escola Sem Partido (EsP) elegeu Paulo Freire como alvo preferencial. De comum, esses dois períodos históricos têm a instituição de um Estado Policial sob a lógica da criminalização daqueles que manifestam pensamentos dissonantes, notadamente os movimentos sociais e populares, os sindicatos e os partidos políticos progressistas.

Intenta-se desvelar porquê Paulo Freire tornou-se o foco preferencial do movimento Escola sem Partido. Para problematizar essa questão, o presente texto foi organizado em três partes. A primeira seção procura desvelar as ações e as intencionalidades do EsP no campo educacional para compreender como fundamentam as críticas à Paulo Freire. Na sequência, problematiza-se o significado em Freire da não neutralidade da educação e a sua defesa intransigente em torno da acepção "educação é política". O terceiro item examina Paulo Freire como alvo preferencial de práticas autoritárias em dois contextos históricos distintos.

O movimento Escola sem Partido: ações e intencionalidades

A análise do movimento pedagógico autodenominado Escola sem Partido não deve restringir-se às questões educacionais, posto que sua incidência ultrapassa os muros escolares. Nesta perspectiva, o viés ideológico e político do EsP caracteriza-se por: "Um sentido autoritário que se afirma na criminalização das concepções de conhecimento histórico e de formação humana que interessam à classe trabalhadora e em posicionamentos de intolerância e ódio com os movimentos sociais[...]" (FRIGOTTO, 2017, p. 18).

Amalgamado à concepção de Estado Policial, o movimento Escola Sem Partido recorreu à "[...] judicialização da relação entre professores e alunos, tendo, em seguida, passado a pressionar as assembleias estaduais e municipais por projetos de leis que legitimassem suas ideias" (MACEDO, 2017, p. 508).

Com foco na educação básica e no ensino superior, os organizadores do EsP [1] justificam sua criação "para dar visibilidade a um problema gravíssimo que atinge a imensa maioria das escolas e universidades brasileiras: a instrumentalização do ensino para fins ideológicos, políticos e partidários". A ação do EsP centra-se no controle dos professores, sem apresentar quaisquer diagnósticos de questões educacionais e/ou propostas para sua melhoria.

Pode-se localizar em meados dos anos 1980, algumas das ideias que servem de base ao EsP. Excertos do livro "Social Democracia e Educação: teses para discussão" de Guiomar Namo de Mello permitem-nos localizar resistências à Paulo Freire e as suas ideias nas instituições educacionais traduzindo, portanto, a ascendência do movimento Escola sem Partido.

Ao encampar a proposta de "Revolução Educacional na perspectiva da Social Democracia", Mello (1990, p. 18) propõe "[...] limpar o debate educacional de invencionices populistas como a chamada escola de tempo integral, bem como retirar esse debate do emaranhado ideológico que tem tomado tempo e energia [...]". Na perspectiva da autora, a educação escolar deve se restringir à transmissão de conhecimentos disciplinares. Contrapondo-se à Paulo Freire, assevera: "Não cumpre à escola formar militantes políticos, nem ela tem poder para determinar o destino social, a ideologia ou o projeto político de cada um" (MELLO, 1990, p. 31).

Localiza-se entre os esforços do EsP para consolidar seu projeto educacional conservador, a iniciativa de emplacar a Ideia Legislativa nº 90.310 sob o título "Revogação da lei que institui Paulo Freire patrono da educação brasileira (Lei n. 12612/2012)" a partir do argumento: "Paulo Freire é considerado filósofo de esquerda e seu método de educação se baseia na luta de classes, o sócio construtivismo é a materialização do marxismo cultural, os resultados são catastróficos e tal método já demonstrou em todas as avaliações internacionais que é um fracasso retumbante", proposta apresentada pela estudante Stefanny Papaiano.

O EsP tem no seu interior pessoas ligadas à autodenominada "nova direita brasileira", com formação majoritária na área jurídica e sem vínculos com o campo educacional. Embora exista uma base de conhecimento jurídico no interior do grupo, os projetos de lei propostos são eivados de contradições. O Projeto de Lei n. 867/2015 de autoria do Deputado Federal Izalci (PSDB/DF), similar a outros em diferentes entes federados, estabelece que "a educação nacional respeitará o princípio da ‘neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado’" (VASCONCELOS, 2016, p. 79). O mais grave deste projeto é desconsiderar o pressuposto intrínseco à democracia escolar, ou seja, a necessidade de a escola tratar os
temas de forma diversa e não reproduzir particularismos familiares no espaço da sala de aula. Estas proposições se assemelham aos momentos mais sombrios de nossa história, em que ditaduras instaladas nos países latino-americanos nas décadas de 1960 e 1970, prenderam e torturaram pessoas por divulgar as ideias de Paulo Freire.

Para Penna (2016), o EsP recorre ao uso de terminologias que objetivam deturpar a concepção original, com vistas a desqualificar seu uso. Para exemplificar, o autor destaca um primeiro elemento caracterizado pelo uso de expressões sem definição precisa "de maneira que uma ampla gama de casos possa ser enquadrada usando essas expressões. Cito, como exemplo, os termos: "doutrinação ideológica", "ideologia de gênero" e "marxismo cultural" (PENNA, 2016, p. 94).

Ximenes (2016) apresenta uma série de argumentos para reforçar o caráter ilegal das proposições do EsP referentes à educação, a começar por essa questão da neutralidade da escola. Segundo o autor, "[...] ‘neutralidade’ não é um valor constitucional, já que é incompatível com a própria definição de Estado Democrático de Direito, que tem no estabelecimento de objetivos políticos, como "construir uma sociedade livre, justa e solidária" e "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (XIMENES, 2016, p. 52).

Ximenes e Vick (2020) consideram que a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, acerca do movimento EsP, encerra uma disputa jurídica sobre a censura nas escolas. Ressaltam que "[...] as decisões do STF reforçam a ideia de que as escolhas pedagógicas são parte do exercício regular da condição docente, sendo inclusive parte de sua liberdade fundamental de expressão na profissão" (XIMENES; VICK, 2020, s/p).

Depreende-se que, na tentativa de inviabilizar a escola pública, o EsP opera a partir de duas estratégias que combinam o embate no plano discursivo e a busca da interdição via judicial de elementos substantivos do currículo, embargando também a atuação dos professores.

O significado em Freire da não neutralidade da educação

Ao analisar o cerne das críticas à Paulo Freire, constata-se que estas se centram na acusação de não neutralidade, de sua filiação à uma ideologia, notadamente de esquerda. Ao lado das questões de fundo moral e religioso, o combate ao componente político da educação é um dos elementos que constituem um dos pontos centrais da atuação do EsP, denominados por eles, em suas definições genéricas e imprecisas como "doutrinação" ou "marxismo cultural".

Para problematizar esse tema, parte-se do conceito de ideologia, pois este contribui para a reflexão sobre os fundamentos da prática educacional. Sem a pretensão de aprofundar esse debate, conceituamos ideologia e como está se articula à prática educacional. Chauí (2016, p. 245) argumenta que "A noção de ideologia pode ser compreendida como um corpus de representações e de normas que fixam e prescrevem de antemão o que se deve e como se deve pensar, agir e sentir". Esta definição insere-se em uma análise mais ampla da sociedade de classes, em que a ideologia legitima a divisão social.

Ao ser questionado sobre a relação entre a educação e a política, Freire ressaltou que a formulação de educação como um ato político foi elaborada ao longo do tempo. O primeiro consta no livro Educação como Prática da Liberdade, onde o autor explicita: "não há um momento sequer que eu me refira à politicidade da Educação" (FREIRE; BETTO, 1986, p. 17). Um segundo momento relatado por Freire "no começo do exílio, no Chile, eu comecei a falar de um aspecto político da educação ou do aspecto político da educação". Por fim, em sua formulação acabada, tem-se "Não, não há um aspecto político; a educação é política. Ela tem uma politicidade, a política tem uma educabilidade, que dizer: há uma natureza política do ato educativo, indiscutível" (FREIRE; BETTO, 1986, p. 17- 18).

Importante salientar que o Freire respondeu em várias oportunidades sobre a necessidade de uma educação radicalmente democrática, incompatível com a imposição de opiniões, seja dos grupos reacionários detentores do poder, seja de grupos progressistas que os combatem. O autor afirma que práticas substantivamente democráticas são inconciliáveis com "as atitudes e as práticas elitistamente autoritárias de quem, julgando-se dono da verdade revolucionária, transforma as classes populares em mera incidência de suas palavras de ordem" (FREIRE; BETTO, 1986, p. 64).

Ou seja, em Freire não existe a possibilidade da neutralidade no ato educativo, que sempre carrega em si os posicionamentos implícitos ou explícitos daqueles que formulam e praticam o ensino e a aprendizagem, por outro lado, isso não significa que a escola deva ser um espaço de "doutrinação", como alegam os membros da EsP. A escola realmente democrática não pode ser espaço de imposição de saberes, ou espaço de interjeição de saberes, todos os saberes são importantes e, por isso mesmo, não devem ser ignorados.
Se o EsP se caracteriza pela interdição de alguns temas e imposição de outros para o ambiente escolar, a democracia em Freire tem na tolerância uma chave para a compreensão. Um educador democrático se caracteriza pelo respeito à diferença, esse professor "tem que respeitar e tolerar inclusive a postura politicamente oposta à sua, e testemunhar aos educandos a sua capacidade de conviver com essas diferenças".

A análise da extensa obra de Freire revela sua total concordância com a ideia de que práticas de doutrinação não devem fazer parte da educação, segundo ele: "O que me parece horrível [...] é a militância sectária, realmente intolerante, que não é radical, que ultrapassa a radicalidade e cai no terreno do sectarismo. É esse tipo que pretende fazer a cabeça dos outros" (FREIRE; GUIMARÃES, 1984, p. 88).

Do ponto de vista conceitual, é necessário aprofundar a questão da neutralidade na educação, pois existe uma acusação explícita de que Paulo Freire não tem uma proposta neutra sobre a educação. Sobre esse aspecto seria pertinente analisar duas questões. A primeira sobre a neutralidade no Movimento EsP e a segunda sobre a ideia de uma educação baseada na neutralidade. Para Frigotto (2016, p. 12), o EsP está longe de ser neutro e apartidário, pelo contrário, trata-se do: "[...] partido da intolerância com as diferentes ou antagônicas visões de mundo, de conhecimento, de educação, de justiça, de liberdade; partido, portanto da xenofobia nas suas diferentes facetas: de gênero, de etnia, da pobreza e dos pobres etc".

Este entendimento joga por terra um dos principais argumentos utilizados pela EsP para o combate à Paulo Freire, que reside exatamente na falta de neutralidade de sua proposta educacional. Portanto, é necessário problematizar os conceitos de neutralidade que embasam a ação educacional, na perspectiva do EsP, uma vez que em uma análise mais acurada pode-se afirmar que não existe ação de neutralidade, seja no campo da ação educativa, seja no campo da ação política mais ampla.

De forma mais específica, Freire (1996) crítica a pretensa neutralidade das práticas educativas qualificadas por ele como um discurso reacionário, contrário à compreensão do próprio mundo. Assim, "o espaço pedagógico, neutro por excelência, é aquele em que se treinam os alunos para práticas apolíticas, como se a maneira humana de estar no mundo fosse ou pudesse ser uma maneira neutra" (FREIRE, 1996, p. 110).

Em síntese, o discurso da neutralidade é na verdade uma forma de esconder determinadas opções teórico-metodológicas ou escolhas políticas, no sentido amplo do termo. Ao docente, carregado de ética, cabe explicitar suas posições, sendo assim ético com seus alunos e com sua prática, o que não pode ser conseguido ao ocultar suas opções e as motivações em adotá-las. Parece evidente que este é o caso do EsP, posto que propagam a neutralidade para ocultar suas opções teóricas, metodológicas e políticas.

Paulo Freire como alvo preferencial do Escola sem Partido 

A pedagogia de Paulo Freire está comprometida radicalmente com a democratização substantiva da realidade brasileira. Consiste, portanto, na alternativa pedagógica que melhor expressa, em termos educacionais, a luta por esta democratização substantiva e, é exatamente, à esta democratização substantiva que omovimento EsP se opõe centralmente.
Definimos democratização substantiva a partir das contribuições de Chauí e de Freire.Para Chauí (2019) [2], a concepção de direito é central na democracia, posto que nas
sociedades democráticas o direito não é sinônimo de necessidade, de carência ou mesmo de interesses particulares: 

Mas se distingue fundamentalmente do privilégio, que é sempre particular. Os privilégios se opõem aos direitos. A democracia não pode se confinar a um setor específico. Ela determina a forma das relações sociais e de todas as instituições, ela é o único regime político que é a forma social da sociedade coletiva. Uma sociedade não é um simples regime de governo porque há eleições, respeito à vontade da maioria e das minorias. A democracia é uma criação social de tal maneira que determina, dirige e controla o poder dos governantes. Do ponto de vista político, todos os cidadãos têm competência para opinar e decidir. A política não é uma questão técnica nem científica, mas é a ação coletiva, a decisão coletiva quanto aos interesses da própria sociedade. (CHAUÍ, 2019, s/p)

A presença do contraditório é inerente às sociedades que adotam regimes democráticos. Percorrem a sociedade brasileira marcas históricas próprias de uma estrutura antidemocrática, ancorada em elementos como violência e autoritarismo. Embora se configure como democrática, o projeto societário brasileiro aceita fortemente o princípio da isonomia, mas não o de isegoria, notadamente por esse princípio traduzir o "direito de todos para expor em público suas opiniões, vê-las discutidas, aceitas ou recusadas em público" (CHAUÍ, 2020, p. 2).

A concepção de democracia é central na produção freireana. Na obra "Educação como prática de liberdade" (1967/1977) esse termo é citado 43 vezes. Na acepção de Freire, democracia comporta:

A democracia que, antes de ser forma política, é forma de vida, se caracteriza sobretudo por forte dose de transitividade de consciência no comportamento do homem. Transitividade que não nasce e nem se desenvolve a não ser dentro de certas condições em que o homem seja lançado ao debate, ao exame de seus problemas e dos problemas comuns. Em que o homem participe. (FREIRE, 1967/1977, p. 81)

A democracia, portanto, opera com o diálogo e com a participação. Assim, "Falar, por exemplo, em democracia e silenciar o povo é uma farsa. Falar em humanismo e negar os homens é uma mentira" (FREIRE, 1968/1983, p.52). Freire (1967/1977) assevera que o uso que os setores conservadores fazem da democracia descaracteriza o sujeito e sua participação na sociedade:

Defendem uma democracia sui generis em que o povo é um enfermo, a quem se aplicam remédios. E sua enfermidade está precisamente em ter voz e participação. Toda vez que tente expressar-se livremente e pretenda participar é sinal de que continua enfermo, necessitando, assim, de mais "remédio". A saúde, para esta estranha democracia, está no silêncio do povo, na sua quietude. (FREIRE, 1967/1977, p. 54)

Freire (1967/1977) desvela a deturpação da própria democracia, criando-se um simulacro da realidade, caracterizada por "formas de vida ‘mudas’, quietas e discursivas, das fases rígidas e militarmente autoritárias". Para compreender a razão pela qual Paulo Freire foi escolhido como um alvo preferencial pelo movimento

EsP é importante recuperar o que aconteceu em relação a Freire no começo da década de 1960, momento marcado pelo avanço dos setores populares e que foram violentamente interrompidos pelo golpe de 1964.

Toledo (2004, p. 15), ressalta a abrangência do golpe de 1964 que, para além do ataque direto à democracia, alvejou intensamente outras esferas, constituindo-se em ação "[...]
contra as reformas sociais e políticas; uma ação repressiva contra a politização das organizações dos trabalhadores (no campo e nas cidades); um estancamento do amplo e rico debate ideológico e cultural que estava em curso no país". Para Fernandes (1980, p. 113), "O que se procurava impedir era a transição de uma democracia restrita para uma democracia de participação ampliada [...]".

Paulo Freire foi um dos primeiros brasileiros punidos pelo regime autoritário. O "Programa Nacional de Alfabetização", instituído por meio do Decreto nº 53.465 de 21 de janeiro de 1964 e que deveria empregar o "Sistema Paulo Freire para alfabetização em tempo rápido", foi extinto pelo ‘novo’ regime, logo após o golpe de Estado em 1 de abril de 1964.Mas, de fato o"Programa Nacional de Alfabetização" foi um dos elementos mais importantes que levaramos setores golpistas a organizarem o golpe.

Se a participação das massas alfabetizadas já alterava substancialmente o quadro das relações de poder, que ocorreria se fosse permitida a participação do conjunto das classes populares? Para os grupos da direita, isto parecia significar o fim da democracia. Em verdade, poderia significar o começo de uma verdadeira democracia para o povo e o fim da história política de muitos dos setores privilegiados. (FREIRE, 1977, p. 54)

A interrupção e a consequente anulação de projetos de alfabetização popular foram práticas discricionárias da ditadura civil-militar. A esse respeito, Haddad e Di Pierro (2000, p. 113), ressaltam que "O golpe militar de 1964 produziu uma ruptura política em função da qual os movimentos de educação e cultura populares foram reprimidos, seus dirigentes, perseguidos, seus ideais, censurados".

A análise de Freire sobre o analfabetismo marca uma diferença substantiva em relação ao regime autoritário:

Para a concepção crítica, o analfabetismo nem é uma "chaga", nem uma "erva daninha" a ser erradicada, nem tampouco uma enfermidade, mas uma das expressões concretas de uma realidade social injusta. Não é um problema estritamente linguístico nem exclusivamente pedagógico, metodológico, mas político, como a alfabetização por meio da qual se pretende superá-lo. Proclamar sua neutralidade, ingênua ou astutamente, não afeta em nada a sua politicidade intrínseca. (FREIRE, 1982, p. 15-16)

Teixeira (2012, p. 1) considera que o regime militar operou como "força repressiva contra uma das mais ricas, fecundas e criativas experiências de alfabetização de adultos do país". A ação preferencial centra-se na extinção da política de educação popular originária do Governo Goulart (1961 – 1964).

Depreende-se que a associação da educação de jovens e adultos como "instrumento da luta política" tornou tanto os programas e projetos como os seus idealizadores e participantes em "inimigos" do regime militar. Assim, "Logo após o golpe, durante a chamada Operação Limpeza, foram muitos os militantes e coordenadores presos.

Professoras, monitores e funcionários também sofreram com as perseguições da ditadura" (TEIXEIRA, 2012, p. 5). Uma análise mais acurada permite-nos afirmar que para além do ataque direto aos programas e políticas de alfabetização de jovens e adultos e ao próprio Paulo Freire, os militares tentavam eliminar qualquer pensamento dissonante: "[...] para os novos mandatários do poder, alfabetização não deveria ter relação com a política e muito menos quando coordenada por grupos e políticos de esquerda" (TEIXEIRA, 2012, p. 10).
Esclarecido que o golpe de 64 foi em grande medida um golpe contra Paulo Freire, vejamos que, de certa forma, isto se repete com a escolha dePaulo Freire como um alvo preferencial pelo movimento Escola Sem Partido. Também vivíamos, como no início da década de 1960, um avanço considerável das forças populares em direção a esta democratização substantiva da sociedade brasileira, e como em 1964, os setores privilegiados se organizaram para o golpe.

Considerações Finais
Procurou-se, neste texto, destacar porquê no contexto atual brasileiro o movimento EsP elegeu Paulo Freire como um de seus alvos preferenciais, procurando analisar alguns fundamentos que embasam essas práticas, com paralelos com à perseguição à Freire no período da ditadura civil-militar no período de 1964-985.

É certo que a perseguição à Paulo Freire nestes diferentes momentos históricos, tem uma base autoritária, uma ideia de controle sobre o diferente, o considerado subversivo. A esse respeito, Freire (1986) afirma sobre os governos iniciados em 1964: "Sempre digo que o regime militar, que se implantou entre nós a serviço do sistema capitalista, não inventou o autoritarismo. É indiscutível, porém, que deu à tradição autoritária que nos marca uma excepcional contribuição" (FREIRE; BETTO, 1986, p. 63-64).

Sob a acusação de uma educação sem neutralidade, uma educação carregada de sentidos políticos, Freire foi e ainda é atacado, mais pelo que representa do que pela sua real influência nos processos educacionais do tempo presente.

Portanto, cabe, a partir do que foi explanado, uma síntese sobre o que representa a figura e as ideias de Paulo Freire, considerando que as "acusações" que recebe são realmente o elemento central de seu pensamento. O diálogo no ato educativo é central no pensamento freireano, a educação é política e como tal nunca é neutra.

Todo ato educativo vem carregado de sentidos, cabendo ao educador explicitar suas opções por meio do diálogo e do respeito à diversidade de opiniões presentes na sociedade. Freire salienta que o diálogo se dá entre iguais, entre saberes não hierarquizados. Portanto, não existe saberes melhores que outros, saberes mais válidos que outros, existem saberes diferentes sobre o mundo.

Tem-se, assim, que opções autoritárias que visam impor determinada concepção de sociedade, opções que visam interditar determinados temas nas práticas educativas são incompatíveis com a perspectiva freireana, na medida em que a educação em Freire é essencialmente democrática, é baseada no diálogo, é a busca da realização da potencialidade do ser humano, o "ser mais".

 Notas

[1] Ver: http://www.escolasempartido.org/quem-somos/

[2] Texto derivado de conferência proferida no Seminário Internacional "Democracia em Colapso?", promovido pela editora Boitempo em parceria com o Sesc Pinheiros, em São Paulo no dia 15 de outubro de 2019. Ver: CHAUÍ, Marilena. Saiba mais – agência de reportagem. RAFAEL DUARTE, quarta-feira, 16 de outubro de 2019. Disponível em https://www.saibamais.jor.br/marilena-chaui-democracia-e-a-unica-sociedade-e-o-unico--regime-politico-que-considera-o-conflito-legitimo/

Referências

1. BRASIL. Decreto nº 53.886, de 14 de abril de 1964. Revoga o Decreto n. 53.465, de 21 de janeiro de 1964, que instituiu o Programa Nacional de Alfabetização do Ministério da Educação e Cultura. Diário Oficial da União, Seção 1, 14/4/1964b, p. 3313 (Publicação Original). Disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1960-1969/decreto-53886-14-abril-1964-394182-publicacaooriginal-1-pe.html

2. CHAUÍ, Marilena. Comunicação e Democracia. In: Conferência Nacional Lula Livre: Vencer a Batalha da Comunicação. São Paulo, 13 e 14 de abril de 2020. Disponível em https://pt.org.br/marilena-chaui-comunicacao-e-democracia/

3. CHAUÍ, Marilena. Saiba mais – agência de reportagem. RAFAEL DUARTE, quarta-feira, 16 de outubro de 2019. Disponível em https://www.saibamais.jor.br/marilena-chaui-democracia-e-a-unica-sociedade-e-o-unico-regime-politico-que-considera-o-conflito-legitimo/

4. CHAUÍ, Marilena. Ideologia e educação. Educação e Pesquisa, vol. 42, nº. 1, 2016.

5. FERNANDES, Florestan. Brasil, em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980.

6. FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. 7ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

7. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 16ª ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1983.

8. FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 8ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

9. FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sérgio. Sobre educação: diálogos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1984. Volume II.

10. FREIRE, Paulo; BETTO, Frei. Essa escola chamada vida: depoimentos ao repórter Ricardo Kotscho. 4ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1986.

11. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – saberes necessários à prática educativa. 15ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

12. FRIGOTTO, Gaudêncio (org.). Escola "sem" partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2017.

13. HADDAD, Sergio; DI PIERRO, Maria Clara. Escolarização de jovens e adultos. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, n. 14, p. 108-130, Aug. 2000. Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782000000200007&lng=en&nrm=iso>. access on 19 July 2020.

14. MACEDO, Elizabeth. As demandas conservadoras do movimento Escola Sem Partido e a Base Nacional Curricular Comum. Educação & Sociedade, vol.38, núm. 139, abril-junho, 2017, pp. 507-524.

15. MELLO, Guiomar Namo de. Social Democracia e Educação: teses para discussão. 2ª ed. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1990.

16. PENNA, Fernando. O ódio aos professores. IN: SOUZA, A.L.S. et al. A ideologia da Escola sem Partido: 20 autores desmontam o discurso. São Paulo: Autores Associados, j2016.

17. TEIXEIRA, Wagner da Silva. Quando ensinar a ler virou subversão: a ditadura e o combate ao combate do analfabetismo. Disponível em: http://www.encontro2012.mg.anpuh.org/resources/anais/24/1340763408_ARQUIVO_WagnerTeixeira_textocompleto.pdf

18. TOLEDO, Caio Navarro de.1964: o golpe contra as reformas e a democracia.Rev. Bras.Hist.São Paulo, v. 24, n.47, p.13-28, 2004.Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882004000100002&lng=en&nrm=iso>. acesso em 18 de julho de 2020. https://doi.org/10.1590/S0102-01882004000100002 .

19. VASCONCELOS, Joana Salém. A escola, o autoritarismo e a emancipação. IN: SOUZA, A.L.S. et al. A ideologia da Escola sem Partido: 20 autores desmontam o discurso. São Paulo: Autores Associados, 2016.

20. XIMENES, Salomão. O que o direito à educação tem a dizer sobre "escola sem partido"? IN: SOUZA, A.L.S. et al. A ideologia da Escola sem Partido: 20 autores desmontam o discurso. São Paulo: Autores Associados, 2016.

21. XIMENES, Salomão; VICK, Fernanda. A extinção judicial do Escola sem Partido. Le Monde Diplomatique, Edição 156, 1 de julho de 2020, Brasil. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-extincao-judicial-do-escola-sem-partido/

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