Entrevista - Cida Gonçalves | 'Se o outro governo não tinha responsabilidade, este tem!'
Publicado: 01 Março, 2023 - 23h54
Escrito por: CNTE
Ela nasceu em Clementina, no interior de São Paulo, mas radicou-se desde a década de 1980 em Campo Grande (MS), onde formou-se em Comunicação e onde iniciou sua militância pelos direitos das mulheres. Seu nome é Maria Aparecida Gonçalves, mas o Brasil inteiro a conhece como Cida Gonçalves.
Dona de uma personalidade forte, um sorriso fácil e uma simpatia contagiante, Cida ocupou o cargo de secretária nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, nos dois primeiros mandatos de Lula e na gestão Dilma Rousseff, até sua “saída precoce” do poder, como a própria Cida insiste em pontuar, e fez parte da equipe de transição do novo governo, antes de ser convidada pelo presidente para integrar, pela terceira vez, o seu governo, desta vez como ministra.
A atual comandante do Ministério das Mulheres recebeu, com exclusividade, a equipe da Revista Mátria em seu gabinete, para uma entrevista na qual falou sobre diversos assuntos e de suas perspectivas à frente da pasta com o menor orçamento do Governo Federal – herança da “gestão” passada – mas com a mais relevante das missões, entre toda a Esplanada: garantir às mulheres o direito à educação, à saúde, ao emprego, à renda digna e à própria vida. Com a palavra, Cida Gonçalves:
Revista Mátria: Como é retornar para o Governo, agora na condição de ministra, cuja pasta é seu objeto de estudo de uma vida inteira? Principalmente, depois desse período tão tenebroso que o Brasil passou?
Cida Gonçalves: É um misto de responsabilidade, de medo e de emoção também. Por que não? Com tantas mulheres nesse país, o presidente Lula confiou a mim essa tarefa. Então, isso dá uma sensação muito grande de responsabilidade. E eu acredito que nós vamos dar conta dessa missão de garantir que, de fato, 53% da população brasileira esteja representada nesse governo. Eu acho que a gente, de uma forma indireta, já está. Nós somos 11 ministras. É a primeira vez que tem esse número tão grande de ministras no governo. E ainda temos duas mulheres presidentes de banco: na Caixa e no Banco do Brasil. Então, você tem um quadro grande de mulheres. E vamos estar juntas, trabalhando. Isso é muito importante e mostra como as mulheres podem chegar no topo de suas carreiras. E não é em qualquer banco, mas nos dois bancos, vamos dizer, prioritários do Brasil: a Caixa e o Banco do Brasil. Eu acho que é isso. Eu acho que essa força do governo, do presidente Lula, e falo do governo, porque todos os ministros estão imbuídos em ajudar a construir, em fazer ações, em trabalhar. E com 10 mulheres competentes ao meu lado, na verdade, somos 12, porque a gente tem aí a mulher do presidente Lula, que é uma grande militante, uma grande companheira. Nós somos 12 na trincheira para derrotar o machismo e o patriarcado brasileiro.
RM: Nos últimos quatro anos, a pauta da mulher foi invisibilizada, com um claro desmonte das políticas públicas para as mulheres. Por onde a sua gestão pretende começar?
CG: Os desafios são muitos. Porque, na verdade, a gente não vai começar, a gente vai reconstruir. Então, é muito maior o desafio do que você começar. Porque o Ministério se encontra numa situação muito, muito difícil. Tudo o que foi construído, foi simplesmente destruído numa política de terra arrasada. Então, a gente quer recomeçar. Mas nós temos uma vantagem: temos a esperança das pessoas. Nós temos um movimento de mulheres, nós temos uma pauta forte, nós temos neste ano a Marcha das Margaridas, a Marcha das Mulheres Negras, a Marcha das Mulheres Indígenas. Nós temos um presidente da República que apoia, que coloca a pauta das mulheres como prioridade. Acho que isso é o que nos faz, de fato, acreditar que esse Ministério, efetivamente, vai dar certo. Nós vamos conseguir, sim, reconstruir aquilo que foi destruído.
RM: A senhora pode exemplificar quais são as áreas mais críticas?
CG: Primeiro o orçamento. Nós, quando saímos, em 2016, deixamos o orçamento de R$ 300 milhões. Nós estamos herdando um orçamento de R$ 23 milhões; não chega a 10% do que nós deixamos em 2015, 2016. Então, esse, para mim, é o exemplo do que é o desafio que está colocado. Nós temos a questão principal que é fundamental, é estratégica, que é o fato de que as mulheres precisam ser vistas como sujeito de direitos, como pessoas que pensam, que precisam ter cidadania, que decidem por suas próprias vidas. Decidem se querem trabalhar ou não, se querem ficar em casa ou não, se querem ter filho ou não. E o governo anterior destruiu isso. Ele tratava a mulher apenas como um mero reprodutor. Então, era “Salve uma Mulher”, “Cuide de uma Mulher” ... Esses eram os programas que existiam. Para nós, a estratégia principal é assegurar que as políticas públicas, para as mulheres as garantam como sujeitos de direitos.
RM: Nós fazemos a Revista Mátria desde 2003, essa é a 21ª edição. Desde a primeira edição da Mátria, nunca conseguimos retirar a retranca “violência contra a mulher” da nossa pauta. Todos os anos, nós fazemos matéria sobre esse tema. Na primeira Mátria, uma mulher era agredida a cada quatro minutos. Na Mátria de 2023, uma mulher é agredida no Brasil a cada dois minutos. Como é que a gente pode reverter essa situação?
CG: Eu acho que nós precisamos, primeiro, garantir serviços de atendimento às mulheres no máximo de municípios que for necessário. Para se ter uma ideia, hoje nós temos delegacia especializada em 7% dos municípios brasileiros. Se você for contar, a maioria delas está nas capitais. Portanto, o desafio é você garantir um atendimento de qualidade e garantir que as mulheres tenham acesso ao serviço e à informação. Então, esse é o primeiro desafio. E se a gente conseguir fazer isso, vai diminuir o número? Não, porque cada vez que nós aumentarmos o número de serviços, vai aumentar a denúncia. Mas nós caminharemos para chegar ao momento em que, de fato, haja um retrocesso dos números.
A segunda coisa é fazer um trabalho com a sociedade brasileira – porque não cabe unicamente a governo – sobre a necessidade de fazer esse debate, de discutir a importância da intervenção de cada um, de cada uma, no processo de salvar uma vida. Porque o feminicídio é um crime que pode ser evitado. Ele é evitado quando você faz a denúncia, quando você avisa à polícia que o agressor está chegando. Ele é um crime evitável. Então, nós precisamos que a sociedade se incomode com a violência contra as mulheres e se mexa contra essa violência. Precisamos, de um lado, instituir serviços que deem conta de atender às mulheres, fortalecer isso. E, de um outro, fazer com que a sociedade brasileira diga que violência contra as mulheres é crime. Que não tolere, que não digam mais: “é bonzinho...”, “é trabalhador...”, as desculpas que são dadas e que justificam, depois, o feminicídio dessa mulher.
RM: Durante a pandemia da Covid-19, o desemprego e a violência doméstica atingiram em cheio as mulheres negras e pobres. O que está planejado para essa parcela da população?
CG: Nós precisamos construir políticas que de fato incluam essa população, as políticas afirmativas, elas são fundamentais nesse aspecto. Para isso, nós temos a Secretaria de Autonomia Econômica e Política dos Cuidados, porque você tem que discutir o empoderamento das mulheres a partir da sua autonomia econômica, mas também a divisão sexual do trabalho. Também tirar da responsabilidade, única e exclusiva, sore a questão do cuidado. O cuidar da criança, o cuidar do marido, o cuidar da sogra, da mãe, do doente. Então, essa é uma política que nós precisamos estabelecer a curto, médio e longo prazo. Porque, se observarmos, o que mais trouxe desemprego na pandemia de Covid foi o fato de que todo mundo ficava em casa. Quem era que tinha que ajudar a criança a fazer o dever de casa ? Tem uma série de elementos que ficam na responsabilidade da mulher. Quem são as mais pobres? São as negras. Elas estão no último degrau da sociedade brasileira. Elas terminam pagando um preço. E nós precisamos trabalhar em uma linha que garanta autonomia, é preciso trabalhar a conscientização do companheiro para que ele divida as tarefas. Mas, aí, dividir não é só “eu lavo o copo” ou “quando eu estou de bom humor, eu faço a comida”. É dividir mesmo! Então, o Estado brasileiro precisa criar políticas que façam com que isso seja desonerado das mulheres. Não é só creche, entendeu? Porque a creche ajuda, mas se ela vai ser 24 horas? Porque tem a mulher que estuda, a que trabalha até tarde. Vão ter restaurantes comunitários que abram aos finais de semana, para que a mulher possa almoçar com seus filhos, sem precisar ficar desde as sete da manhã cuidando da casa, cuidando da comida? Eu acho que precisamos pensar políticas que de fato deem conta de fazer com que as mulheres tenham condições de ser cidadãs.
RM: Falando de feminicídio, e talvez porque agora as denúncias sejam maiores, a gente nunca ouviu falar de tantos casos como nos últimos dois anos. A senhora acha que a polícia está atuando bem nesses casos?
CG: Eu acho que existem dois fatores. Acho que não conseguimos implementar, no Brasil, até pela nossa saída precoce, as diretrizes de investigação do feminicídio, que nós lançamos em 2015, em parceria com a ONU. Então, eu acho que esse é o primeiro desafio é fazer com que, de fato, as diretrizes sejam implementadas. O segundo, eu não trabalharia apenas com a questão da polícia. Acredito que nós estamos vivendo, nesses últimos seis anos, o aumento do ódio e da violência na sociedade, autorizada, na época, pelo chefe maior do Estado brasileiro. Então, o que eu quero dizer é que foi autorizada a violência contra as mulheres, foi autorizado o assassinato de mulheres, assim como foi autorizado o assassinato dos índios, assim como foi autorizado o assassinato dos gays, das lésbicas. Então, você junta efetivamente a não preparação de todos os profissionais, não só da polícia, para investigar o crime de violência e julgar, porque não é só investigar, é investigar e julgar. E, de um outro lado, o aumento do ódio. Mas, para mim, o maior aumento tem mais a ver com o ódio do que com a não investigação.
RM: E o porte de armas? Na sua avaliação, a liberação do porte de arma facilitou o número de casos?
CG: Isso facilita. Tanto que você vai ver que, nos últimos anos, os dados mostram que as mulheres morriam mais de armas brancas. Nesses últimos anos, tem crescido o número de mulheres mortas por armas de fogo. Então, uma arma na mão de um potencial feminicida, é um grande instrumento para que isso aconteça.
RM: E como a escola pode ajudar a combater a violência contra mulher e contribuir para o empoderamento delas?
CG: Eu acho que a escola é um grande caminho. Não é o único, porque eu não acho que a gente tem que responsabilizar só os professores, nem a escola, pela educação da sociedade brasileira. Mas ela é um grande caminho. Por quê? Porque, dali, você está formando novos homens e novas mulheres. Ali, você vê os problemas, a realidade. Muito dos abusos sexuais, muitas violências, as crianças falam com os professores na sala de aula. Então, eu acho que é um espaço importante. E para o empoderamento, mais ainda, porque é a escola que vai formar homens e mulheres. E nós podemos formar mulheres para serem professoras. Mas nós podemos também formar mulheres para serem cientistas, matemáticas, físicas. Eu acho que nós podemos ter um trabalho super importante nas escolas, tanto nas de base, de ensino fundamental, quanto nas universidades. Mas, principalmente, nas escolas no ensino fundamental. Se a gente conseguir fazer com que as meninas não só apaguem a lousa, mas que elas também façam as contas, que a gente comece a ressignificar o papel das meninas, de empoderar as meninas. Eu acho que é fundamental para que sejam mulheres empoderadas e estejam em lugar de topo no país.
RM: Outra questão é o relacionamento com o Congresso Nacional. A gente tem um Congresso eminentemente conservador, renovado agora recentemente, só em 15%. Então, a gente já conhece a bancada que está lá e tem um Projeto de Lei do Estatuto do Nascituro, por exemplo. Como lidar com esse Congresso? Como o Ministério vai se relacionar?
CG: Nós vamos falar com todo mundo. É o papel do governo falar com todos os parlamentares, todas as parlamentares, independentemente de onde vem, o que pensam, como pensam. É tentar avançar no direito das mulheres. Nós vamos dialogar com quem for necessário, com a bancada feminina, bancadas de oposição, bancadas de situação. Nosso papel é dialogar, é ter propostas concretas, ações reais e fazer com que o Congresso nos apoie nessas ações. Como, por exemplo, a questão da autonomia das mulheres, a questão do empoderamento das mulheres. É enfrentar a violência contra as mulheres. Essas pautas, nós vamos ter que avançar em todos os aspectos e, se for preciso dialogar, nós vamos com o Congresso, com o STF, com quem for necessário.
RM: Dentro dessa perspectiva, no Congresso, tem também um PL, já desde 2011, que iguala o salário entre homens e mulheres. Inclusive, foi uma promessa de campanha do presidente Lula. Como é que o Ministério vai ajudar nesse ponto?
CG: Nós fizemos um levantamento de todos os PL que estão no Congresso. Mas, ao mesmo tempo, nós estamos estudando, para o 8 de março, algumas questões que já coloquem a igualdade salarial, efetivamente, na pauta. Nós sabemos que a igualdade salarial não é só uma questão de legislação. Você tem que ter uma série de outras políticas que ajudem, porque se você diz ‘trabalho igual, salário igual’, a maioria dos trabalhadores vai dizer que já é assim: o mesmo trabalho, o mesmo salário. A questão é que quem mais tem condições de alavancar a carreira, ganha mais. E como é que você tem alternativas de desresponsabilização para que a mulher também possa subir? Na verdade, as mulheres, por causa da responsabilidade do cuidado com a família, não ascendem. Ou seja, não é só a igualdade salarial, ela perpassa pela igualdade de condições.
RM: O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher foi um dos poucos que foram mantidos pelo governo anterior. Como a senhora avalia a composição dele? Está nos planos do Ministério promover a Conferência Nacional de Muheres, que também não aconteceu nos últimos tempos?
CG: O conselho existe e nós estamos, agora, redefinindo na parte ministerial, porque ele é composto pela sociedade civil e pelo governo. Então, nós temos um prazo para que os ministérios possam indicar os seus representantes. Com relação ã parte da sociedade civil, o Conselho foi eleito no ano passado com dois anos de mandato. Então é com esse conselho, com esses movimentos que nós vamos dialogar, vamos seguir trabalhando. Existem, no Conselho, vários movimentos e que a gente já conhece. Elas já estiveram no próprio grupo de trabalho, apresentando o trabalho delas. Então, eu acho que é um conselho de diálogo, aberto. Com relação à Conferência, com R$ 23 milhões, não existe essa possibilidade. Então, possivelmente, nós vamos convocar a quinta confe rência para o ano que vem, para 2024. E, este ano, a gente faz as conferências municipais, as conferências estaduais.
RM: O orçamento de políticas públicas para as mulheres, o "Orçamento Mulher", sancionado pelo governo anterior, realmente é um dos menores do Governo Federal. Quais serão as suas prioridades em 2023?
CG: Na verdade, a gente tem uma prioridade, agora, para os primeiros 100 dias, que foi a tarefa que o presidente Lula trouxe. A primeira, que é urgente, emergente, é colocar o 180 na rua de novo, porque o 180, hoje, acabou, ele não existe. Então, nós estamos reorganizando, retrabalhando, para que ele volte a atender, nas especificidades que as mulheres precisam, da forma com que é necessário. Se o outro governo não tinha responsabilidade, este tem! Então, nós teremos isso como uma prioridade.
Nós temos também, dentro do tema violência, que retomar o programa Mulher Viver sem Violência e as Casas das Mulheres Brasileiras, programa que também parou após os nossos governos. Eles fizeram quatro tipologias de casas, sendo que uma era de 2.200 m², outra de 1.700 m² e uma de 200 m²... não cabe nem a psicóloga e a assistente social. Não é uma casa! Nós precisamos rever efetivamente esse programa.
Nós vamos, sim, recomeçar. Mesmo com esse pouco dinheiro, nós vamos recomeçar, nós vamos puxar de novo a execução para nós. E nós vamos trabalhar dentro da perspectiva de que nós possamos fazer a execução direta, como era feito e que a gente comece a es- palhar a Casa da Mulher Brasileira nas outras capitais do país que ainda não têm. Também pensar qual a estratégia para a capilaridade do atendimento, para não ser só na capital. Então, se serão Casas da Mulher Brasileira, serão Centros de
Referência.
Se intensificar a questão do fortalecimento das Delegacias Especializadas, fortalecer o trabalho do CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) , isso nós estamos em processo de discussão. E a outra urgência, também, dentro da violência, é a questão de enfrentar os feminicídios. No Ceará, por exemplo até 26 de janeiro, 26 mulheres sofreram feminicídio. Nós temos o caso da Janaína*, do Piauí. Estamos com diversos casos que estão colocados na nossa pauta. Então, é voltar a pensar numa estratégia de enfrentar o feminicídio, prevenir com mais patrulha Maria da Penha, ter mais tornozeleira eletrônica, porque funciona mais a tornozeleira que um X na mão **.
Ou mesmo o botão do pânico, porque aí é a Polícia Militar que fiscaliza, não é a própria mulher. E é também estabelecer as diretrizes de investigação e julgamento para que, de fato, a impunidade não seja maior o instrumento de propagação do feminicídio no país.
E, por outro lado, nós queremos lançar a Lei da Igualdade Salarial, proposta pedida pelo presidente Lula, no mês de março. Junto a ela, a gente já quer criar um grupo de trabalho interministerial para começar a discutir quais são as políticas de cuidado que vão junto com a política de igualdade salarial e equiparando e trabalhando a equidade de gênero no mercado de trabalho.
*Universitária estuprada e morta dentro das instalações da Universidade Federal do Piauí.
** Sinal para pedido de ajuda em caso de violência doméstica.
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