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Eunice Paiva: a heroína silenciosa que nos faz gritar pela democracia

Filme “Ainda Estou Aqui” mostra a Ditadura Militar sob o olhar feminino; mãe de cinco filhos, Eunice se transformou em defensora dos direitos humanos após o marido ser torturado e morto pelos militares

Publicado: 21 Março, 2025 - 07h45

Escrito por: Redação | Editado por: Redação

Segunda-feira, 6 de janeiro de 2025. A primeira segunda-feira do ano mal havia começado e o Brasil já amanhecia em festa: a notícia de que Fernanda Torres venceu o Globo de Ouro de melhor atriz de drama por sua atuação no filme “Ainda Estou Aqui” deixou o país em clima de final de Copa do Mundo de futebol.

Algumas semanas depois, mais uma conquista: pela primeira vez na história, um longa-metragem da América do Sul recebe a indicação da maior premiação do cinema mundial, o Oscar, na categoria Melhor Filme, além de ter sido indicado para outras categorias: Melhor Filme Internacional e Melhor Atriz, com Fernanda Torres.

A premiação no Globo de Ouro e as indicações no Oscar põem em evidência nacional e internacional a corajosa história de Eunice Paiva durante a ditadura militar no Brasil, após o desaparecimento de seu marido, o deputado Rubens Paiva, e destaca sua transformação em uma defensora dos direitos humanos. O filme é uma adaptação do livro homônimo, escrito por Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice.

“O que realmente me emociona no livro é o fato de uma história extraordinária de uma família resistindo a um ato de violência e uma mulher se reencontrando em meio a isso. Eu me apaixonei por essa mulher. Eu a conheci. Mas o que o Marcelo fez foi descobrir que sua mãe era de fato o coração desta família”, disse o diretor Walter Salles, que conviveu com a família Paiva e classifica Eunice como uma heroína silenciosa.

“Fiquei intimidado em adaptar o livro para as telonas. Demorei sete anos para fazer a adaptação do livro para o filme, porque foi difícil absorver todo o material e filtrar tudo aquilo, pois era um material tão rico, e em camadas, que eu temia não estar à altura disso”, contou o diretor.

Quem foi Eunice Paiva?

Em janeiro de 1971, o marido de Eunice Paiva foi sequestrado, torturado e assassinado nos porões do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna) no Rio de Janeiro pela ditadura militar brasileira.

Dois anos depois, Eunice voltou a morar com a família, em São Paulo, onde começou a estudar na Faculdade de Direito e lutou por justiça para provar que Rubens Paiva foi morto pelos militares, além de se dedicar a outros casos de desaparecidos políticos e se especializar na defesa jurídica dos povos indígenas.

“Quando eu vi minha mãe perdendo a memória, eu pensei que eu seria o responsável por manter essas lembranças. Depois de tantos anos, e tantos heróis que tivemos, que lutaram contra a ditadura... Havia muitos livros sobre o meu pai, mas não havia livros que falavam sobre as mulheres da época, as mulheres que estavam vivas e que tinham que cuidar de crianças, e lutar contra os regime militar, e reconstruir a democracia”, declarou Marcelo Rubens Paiva, durante evento em Nova York.

“Ela dedicou a vida lutando pela sua família, mas não apenas pela sua família, mas também por outras que sofreram na ditadura. Então, minha mãe mereceu um livro. Mais importante que isso, ela teve que cuidar de cinco filhos, com pouco dinheiro, investiu muito na nossa educação – algo que sou muito grato. Ela foi uma verdadeira heroína cuidando de cinco crianças e  sendo perseguida em todos os lugares”, disse o autor.

Ao assistir entrevistas de Eunice Paiva, a atriz Fernanda Torres percebeu uma mulher que, apesar de ter vivido tudo que viveu, era elegante, cheia de dignidade, sem clichês e sem melodramas. “Era inacreditável e muito intimidador...[a história dela] eu acho que é um conto feminista. Hoje eu assisti ao filme novamente e vejo que no começo mostra ela fazendo café para a família, colocando as crianças para dormir... Você não acredita que aquela mulher vai se tornar a mulher que ela se tornou, e ela faz isso de forma elegante e em silêncio...essa mulher nunca contou aos filhos que seu pai havia sido torturado e assassinado. E cada filho entendeu quando cada um tinha que entender”, disse a atriz.

“É um personagem incrível que me permitiu fazer um trabalho que eu nunca seria capaz de fazer sem o real. Porque, como atriz, sempre fazemos escolhas normais, a imaginação não sai da caixa, mas essa mulher é como um mito, como antígona. Isso é lindo”, revelou Fernanda.

História e ditadura revisitadas

Para a historiadora e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais, Regina Helena Alves da Silva, o filme tem um papel muito importante na atualidade ao mostrar a ditadura para as novas gerações de um jeito pouco impositivo, mas igualmente impactante. Regina diz que o Brasil tem uma “imensa dificuldade com a memória da ditadura”. Para ela, é o país da América Latina que mais dificilmente enfrenta o seu passado.

“Muitos alunos me falam que seus pais ou avós disseram para eles que é exagero o que se conta sobre a ditadura, que nada aconteceu. E o filme mostra como o cotidiano das pessoas naquela época era afetado”, explica.

“A grande marca desse filme é colocar a ditadura no cotidiano. Mostrar que a ditadura afetou o dia a dia das pessoas. A forma como a ditadura é lembrada é pela resistência, pela luta armada, e aí o filme vem e mostra o Rio, mostra as ruas, mostra [a rotina de] uma família de classe média... um cara que é preso porque levava correspondência para as pessoas, ele simplesmente levava carta de pessoas para seus familiares. O filme mostra que a Ditadura não foi um evento na vida de poucos. Ela se misturou ao dia a dia das pessoas”, opina Regina, em entrevista à Revista Mátria.

Grito pela democracia

Para o jornalista Pedro Duran, da CNN Brasil,  “há um simbolismo profundo de que o Globo de Ouro de melhor atriz em drama tenha vindo três dias antes do dia 8 de janeiro, data que virou sinônimo de ataque à democracia brasileira”, escreveu em um artigo para a CNN Brasil. 

“É impossível assistir ao filme e sentir alguma nostalgia da ditadura militar brasileira, que dizimou sonhos e impôs ao país um período sombrio que fica escancarado na cena em que Rubens Paiva é levado de casa pra não voltar. Esse é, definitivamente, o Brasil que não queremos nunca mais.[...] Ao invadirem a sede dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023, homens e mulheres colocaram em risco o Brasil democrático. Hospedados em barracas nos quintais de quartéis militares, relembravam o regime que interrompeu o direito de escolher”, refletiu o jornalista.

Regina concorda. Ela lembra que os atos antidemocráticos do dia 8 de janeiro de 2023 representam o grave desconhecimento de muitas pessoas sobre o que foi a ditadura militar no Brasil. 

“Nós tivemos muitos anos de ditadura no Brasil e só lembramos da ditadura militar, mas temos que lembrar de todos os golpes. No dia 8, vimos uma série de pessoas tomadas por um espírito de atacar as instituições, atacar a nossa democracia. O desconhecimento da nossa história é um negócio pavoroso no Brasil...Isso toma a todos, não só as pessoas que se dizem de direita, e que a gente viu no 8 de janeiro”, comenta a historiadora.

“Essa nação que consegue acionar episódios de loucura e depredação em nome de estar cuidando do país?! O “8 de janeiro” a gente deveria parar para pensar demais... Demais. As pessoas vão para as ruas, pedem [ a volta da] ditadura, pedem que os militares façam alguma coisa, pedem a volta de leis de exceção que elas sequer conhecem! O 8 de janeiro mostra o quanto esse país precisa conhecer sua própria história”, defende.