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Homenagem - Preta, pobre e poeta - É tempo de redescobrir o talento da escritora Carolina de Jesus

Publicado: 03 Março, 2021 - 00h48

Escrito por: CNTE

Mulher, negra, favelada, catadora de papel e mãe solo, no começo do século passado. E, com todos os percalços dessa vida, Carolina Maria de Jesus se tornou uma escritora de reconhecimento mundial. Nascida em 14 de março de 1914 em Sacramento (MG), numa comunidade rural, era filha de pais analfabetos, Carolina foi a primeira da família a frequentar a escola, aos sete anos, matriculada e custeada por dois anos por Maria Leite, então patroa de sua mãe. Não existiam escolas públicas e Maria fez questão de pagar pela alfabetização de Carolina. Ali, aprendeu a ler e escrever. Assim nascia o gosto pela leitura que a levou à prisão, por duas vezes, ainda criança. Em uma delas, estava lendo um dicionário, mas disseram ser o Livro de São Cipriano, texto que à época era considerado maldito por tratar de "magia contra brancos".

Carolina e a mãe foram levadas à cadeia, apanharam, ficaram sem água e comida. Quando sua mãe morreu, em 1937, ela seguiu – a pé – para São Paulo onde, depois de morar na rua, conseguiu um emprego na casa do médico Euryclides de Jesus Zerbini, precursor da cirurgia de coração no Brasil. Zerbini tinha uma vasta biblioteca em casa e permitia
à Carolina ler os livros nos dias de folga. Dizem que aos finais de semana, ela pedia para ficar na casa, instalada na biblioteca. Aos 33 anos, engravidou e não pode mais trabalhar na casa do Dr. Zerbini.

Desempregada e grávida do primeiro filho, João José, instalou-se na favela do Canindé, na Zona Norte da capital paulista. Essa é considerada a primeira favela da capital. Trabalhava como catadora de papel e, nas horas vagas, registrava o cotidiano da favela em cadernos que encontrava no lixo, como diários. Na favela, Carolina construiu sua própria casa, sozinha, com pedaços de madeira, papelão lata e outras coisas que conseguia encontrar no lixo.

Um desses diários se transformou em seu primeiro livro: Quarto de Despejo - Diário de uma Favelada, publicado em 1960. A obra virou best-seller. A primeira tiragem foi de dez mil exemplares e esgotou-se em uma semana. Com as reimpressões, vendeu 100 mil cópias em um ano. Desde sua publicação, a obra vendeu mais de um milhão de exemplares, foi comercializada em 40 países e traduzida para 16 idiomas.

Carolina de Jesus é a mulher negra que mais vendeu livros no Brasil e no mundo. Mas a trajetória para chegar à primeira publicação não foi simples. Carolina Maria, ao longo do dia, enquanto vagava pela cidade recolhendo papel, parava nas redações de jornais e rádios para mostrar seus escritos.

Apresentava-se dizendo: "Meu nome é Carolina Maria, poetisa preta." Além dos diários, escrevia poesias e músicas. Chegou a cantar e declamar em algumas rádios, mas a virada
aconteceu em 1958, quando conheceu o jornalista Audálio Dantas.

O encontro aconteceu no Canindé, quando Dantas buscava fazer uma matéria sobre a vida na favela. Quando teve acesso aos escritos de Carolina, o jornalista se deu conta de já tinha todo o material necessário para falar sobre a localidade. Admirado com a capacidade de expressão de Carolina, resolveu ajudá-la a publicar seu primeiro e mais famoso livro.
O título "Quarto de Despejo" é uma analogia à própria favela, considerada o quarto de despejo da cidade de São Paulo. Todos os indesejados nas regiões nobres eram despejados
ali. E foi falando da favela, da fome, das dificuldades com a linguagem da favela, que Carolina Maria conseguiu mostrar seus pensamentos e atingir a população brasileira. Uma
das frases marcantes de seu livro traz a relação entre a fome e a escrita: "Quando eu não tenho o que comer, eu escrevo. Todo dia eu escrevo."

Após a publicação e o sucesso de Quarto de Despejo, Carolina se mudou para o bairro de Santana, local de classe média de São Paulo. Ganhou muito dinheiro rapidamente, mas não soube administrar os recursos. Três anos depois, publicou o romance Pedaços de Fome e o livro Provérbios, bancados de seu próprio bolso e que não tiveram o mesmo sucesso. Em 1969, mudou-se de Santana para Parelheiros, na Zona Sul da cidade, região que tinha ares de interior e lembrava a infância da autora. Carolina Maria jamais quis se casar, para não ser submissa aos homens. Teve três filhos, cada um de um relacionamento diferente.

Todos os três pais eram homens brancos, sendo que dois eram estrangeiros, que passavam um tempo no Canindé, vindo para comercializar produtos no Brasil. Suas três gravidezes não foram planejadas. Seu primeiro filho foi fruto de seu namoro com um marinheiro português, que a abandonou grávida; o segundo filho, José Carlos, veio de um relacionamento com um comerciante espanhol. A terceira filha, Vera Eunice, foi concebida em seu namoro com um empresário brasileiro.

As três crianças nasceram de parto normal, na cidade de São Paulo, e desde pequenas foram influenciadas pela mãe com o gosto pelos livros e pela leitura. A filha de Carolina, Vera Eunice, tornou-se professora e ainda é viva.

Com a má administração do dinheiro que ganhou, acabou voltando às ruas para catar lixo. Morreu em fevereiro de 1977, aos 62 anos, de insuficiência respiratória, em consequência da asma que sempre a acompanhou. Outros seis livros póstumos foram publicados. Eram, basicamente, compilados a partir dos cadernos e materiais deixados pela autora. Em 2017, sua história foi registrada por Tom Farias em Carolina - Uma Biografia, publicada pela editora Malê. O canal GNT produziu um documentário sobre ela: Carolina.

Carolina Maria de Jesus e sua obra:

Quarto de Despejo (1960)
Casa de Alvenaria (1961)
Pedaços de Fome (1963)
Provérbios (1963)
Obras póstumas
Diário de Bitita (1977)
Um Brasil para Brasileiros (1982)
Meu Estranho Diário (1996)
Antologia Pessoal (1996)
Onde Estaes Felicidade (2014)
Meu Sonho é Escrever: contos inéditos e outros escritos (2018)

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