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Meio Ambiente - Mulheres ribeirinhas: entre a pesca e a poluição

Publicado: 02 Março, 2020 - 10h09

Escrito por: CNTE

O descaso do governo para quem tira o sustento das águas

Na cidade do Recife (PE), existe um bairro cujo nome é bastante peculiar – Brasília Teimosa, que apesar de estar na Zona Sul, o lado mais nobre da capital pernambucana, é formado por casebres de madeira, no estilo palafita, e habitado por famílias de pescadores. Daí o adjetivo “teimosa”, porque todos os esforços do poder público e da especulação imobiliária, para retirar as famílias do local, esbarraram numa teimosa resistência de seus habitantes. Não bastasse a luta pela permanência, seus moradores enfrentam inimigos ainda mais perigosos na luta pela sobrevivência: a poluição e o lixo depositados nas águas, que ameaçam seu mar, seus rios, sua pesca e seu pão.

O sustento das famílias vem da atividade pesqueira desenvolvida pela Colônia de Pescadores Z1. Presidida por Sandra da Silva Lima, e com quase metade do quadro formado por mulheres, a colônia abarca ainda os bairros do Pina e Santo Amaro. Para a dirigente, de 36 anos, a poluição coloca em risco uma atividade que vem sendo desenvolvida a gerações. “Se o meio ambiente sofre, quem sofre é a família do pescador, que não tem outra profissão, só aquela”, sentencia Sandra.“Muitos passam de pai para filho. Meu pai foi pescador, meu irmão e minha mãe também, e eu também. A gente vê uma cadeia de pai para filho, e quando o meio ambiente é degradado, a gente fica sem saber o que fazer”.

Os efeitos do petróleo despejado no litoral nordestino, por exemplo, foram sentidos por todos os que trabalham com a pesca na região. Mas ainda mais por essas mulheres, a maioria marisqueiras, que fazem a extração e a catação de moluscos (mariscos e sururus), e que não foram beneficiadas com o recurso liberado para amenizar o prejuízo causado pelos dois meses (outubro e novembro) de pesca prejudicada.

O valor, repassado em dezembro e janeiro, atendeu apenas a pessoas listadas em um cadastro desatualizado do governo federal. Segundo o secretário de Desenvolvimento Agrário de Pernambuco, Dilson Peixoto, sete mil profissionais ficaram de fora, incluindo todas as mulheres. “Até hoje, estamos com contas atrasadas”, desabafa Sandra. Sem o consumidor, assustado pelos efeitos de consumir um suposto alimento contaminado, o produto empacou nos entrepostos e apodreceu. Quando não era assim, virava refeição obrigatória no café da manhã, no almoço e no jantar das famílias ribeirinhas. Sem comércio de pescados, não havia dinheiro para comprar o pão, o feijão e o arroz de sua subsistência. Aos poucos, a situação foi se normalizando.

Mas o medo da fome voltou feroz, como lembra Edy Rocha, coordenador do Centro Educacional Popular Saber Viver: “Durante a tragédia do óleo, fiquei morrendo de medo. Um lugar com fome, vira um lugar violento. E nossa comunidade já foi chamada de Ilha sem Deus por conta disso”.

O Centro Educacional Popular Saber Viver é um trabalho social desenvolvido na comunidade Ilha de Deus, na Zona Sul do Recife. No local, 80% das mulheres são marisqueiras,
pessoas que chegam a passar 12 horas sentadas catando moluscos. Isso para encher um balde com o sururu ou marisco, vendido por apenas R$ 7. Sem a ajuda emergencial do município, do estado e do governo federal, a comunidade se uniu para adquirir cestas básicas e matar a própria fome.

O derrame do óleo é apenas a ponta do iceberg para uma situação ambiental que já vem desastrosa, há anos, nessas comunidades: o lixo lançado nas águas. Sandra conta que uma das pescadoras contraiu um problema ginecológico grave pelo contato com as águas contaminadas por dejetos vindos de áreas vizinhas, inclusive de shopping centers. “A médica explicou para a moça que ela tinha sido contaminada por uma bactéria no rio”, conta a dirigente.

“Ficamos à mercê da contaminação. Temos que entrar na lama para tirar o marisco e o sururu; tem quem se corte até com seringa”, denuncia. “Há muito descaso da Secretaria de
Meio Ambiente. O que temos é lixo no rio e a falta de educação do povo, que joga lixo no rio. A comunidade até faz coleta, mas recebe carga de lixo”, ressalta Edy Rocha. Para ele, uma saída seria o projeto turismo de base comunitária, que recebeu oito mil pessoas entre 2018 e 2019. “Temos nossa gastronomia e até hostel e catamarã na Ilha. Na minha cabeça, isso poderia mostrar ao poder público o potencial que temos para que nos ajudassem e os pescadores não sofressem tanto. Há muitas mulheres com doenças contraídas na maré”, explica.

Maria Silvana dos Santos, 40 anos, a Mozinho, é uma das marisqueiras da Ilha de Deus e tem buscado alternativas à pesca. Há dois anos, trabalha com artesanato feito com as conchas dos moluscos e também ensina a arte a outras mulheres: “Há dois anos que faço artesanato para ter outra renda”, conclui Mozinho. Em 2007, a Ilha recebeu obras de reestruturação promovidas pelo governo do estado, mas somente 50% dos serviços ficaram prontos.

Edy conta que faltou terminar casas, o Centro de Beneficiamento de Pescados, praças e o principal: os projetos sociais de geração de trabalho e renda. “Não adianta dar casa a quem
mora em palafita, onde ele não paga luz, por exemplo. Com uma casa, a pessoa passa a ter obrigações. Então, o governo tem que trabalhar com projetos sociais para inserção dessas
pessoas no mercado de trabalho”.

Para o secretário estadual de Meio Ambiente, José Bertotti, o Brasil nunca tratou adequadamente a oferta de saneamento: “O Nordeste tem a menor cobertura de saneamento do país, fruto do desenvolvimento que não olha a necessidade de cada região. Nossa cobertura em Pernambuco atinge apenas 30% da população e temos clareza da necessidade de ampliar isso”. “Quem vive da pesca, se não tem saneamento, corre risco de contaminação. Cuidar da água é fundamental para o equilíbrio do meio ambiente, saúde das pessoas e para garantir um insumo básico de atividade econômica, que é a água”, destaca.

PIRACANGA (BA): COMUNIDADE RETIRA QUATRO TONELADAS DE ÓLEO DA PRAIA

Quando fragmentos de petróleo cru começaram a chegar na praia de Piracanga (península de Maraú, localizada a 5 Km de Itacaré), no final de outubro de 2019, a comunidade
local criou um grupo de monitoramento em várias frentes. Juliana Faber, ativista ecológica e moradora da comunidade Inkiri Piracanga, lembra que não havia sequer informações para lidar com a crise: “Nós não tínhamos nenhum referencial. O óleo começou a chegar em Pernambuco e ninguém estava preparado para isso, não havia referência (bibliográfica) para lidar com esse desastre, e no fim essa falta acabou unindo as pessoas, principalmente os moradores locais, além dos que chegavam de Itacaré e de outras regiões para ajudar”.

Para organizar o volume grande de moradores e voluntários para limpar a praia, foram criadas diversas frentes de trabalho. “A maior parte dessas frentes foi liderada por mulheres” explica Juliana, ressaltando o protagonismo delas nessa ação.

Proteção dos manguezais - Uma das principais preocupações da comunidade era que o óleo não entrasse no Rio Piracanga, ecossistema com um mangue que é berçário de inúmeras espécies. Para isso, foi criado um grupo focado para o desenvolvimento de redes de contenção para o óleo, além da montagem de um eco ponto com equipamentos de proteção individuais e demais materiais necessários para a operação de coleta. Além do eco ponto, havia um local para fornecer água e alimentos aos envolvidos na coleta diária e ajudar na logística de voluntários, que vieram de outros locais e precisavam de água, alimentação e transporte. “As redes se mostraram muito eficientes e ainda estamos usando esse material”, relata a ambientalista.

Apoios - O movimento contou com colaborações do Exército, Marinha, Ibama, Greenpeace e do coletivo de Pernambuco Salve Maracaípe. Universidades públicas federais (da Bahia e de Viçosa-MG) foram acionadas para a busca de soluções à biorremediação. “Eles estiveram presentes, mas por pouco tempo. Foi a comunidade que ficou, ao longo de
dois meses e até hoje, na limpeza”, explica Juliana.

Conscientização - “Em uma das praias próximas à nossa, mais turística, eu vi pedaços grandes de petróleo na areia e as crianças brincavam ao redor. As autoridades locais em nenhum momento avisaram que as praias poderiam estar impróprias para o banho, para não perderem o dinheiro do turismo”, desabafa Juliana.

Monitoramento - A comunidade Inkiri-Piracanga divulgou um relatório das ações: cerca de quatro toneladas de óleo foram recolhidos ao longo de dois meses. No final de dezembro de 2019, foi detectada a presença de Benzeno e Tolueno, porém dentro do nível permitido para banho de rio e de mar. “Isso significa que para o banho está apropriado, mas não significa que a natureza conseguiu degradar. Ainda estamos envolvidos nesse trabalho de biorremediar essas águas também”.

VIDAS REFEITAS NO BARRO
As histórias de duas mulheres que tiveram que reconstruir suas vidas após a tragédia de Brumadinho

Após o rompimento da Barragem da Mina do Córrego Feijão, em 25 de janeiro de 2019, que deixou mais de 250 mortos na cidade de Brumadinho, região metropolitana de Belo Horizonte (MG), duas mulheres, que tiveram suas vidas alteradas, reviradas e desconfiguradas, se reinventam para lutar pelas dezenas de famílias que perderam seus parentes no “mar de lama”: a costureira Anastácia do Carmo Silva e a psicóloga Kenia Paiva Silva Lamounier.

“Quando recebi os primeiros áudios, eu não acreditei! Eu não tinha noção da área da Vale; eu não tinha noção da barragem. Eu não sabia sequer que a Vale mantinha uma barragem tão primitiva e com todas as suas instalações abaixo da barragem”, declara Anastácia, 50 anos, que perdeu o filho, Cleiton Luiz Moreira Silva, de 29 anos, mecânico de vulcanização da Vale há quase dois anos e que cursava o sexto período de engenharia mecânica.


A vida de Anastácia e de várias outras esposas, mães e filhas é, desde então, conviver com a dor e o luto da perda do parente. “Eu e o meu filho éramos muito amigos, além de mãe e
filho, nós éramos companheiros. Ele era o meu ajudador, o meu companheiro, perdi várias pessoas em uma. É muito difícil, não perdi somente um filho”, explica Anastácia. Para Kenia Lamounier, 52 anos, a dor foi de perder o marido, Adriano Aguiar Lamounier, técnico em planejamento em manutenção elétrica, que trabalhava há 18 anos na Vale. Ela é psicóloga, trabalha na rede municipal de Brumadinho e, assim como Anastácia, faz parte da Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos do rompimento da Barragem Mina Córrego Feijão Brumadinho (Avabrum). As duas se reinventam a cada dia para reconstruir a vida delas e de suas famílias. Elas fizeram as histórias de duas mulheres que tiveram que reconstruir suas vidas após a tragédia de Brumadinho da dor o incentivo para continuar vivendo e lutando pela vida.

Na avaliação da psicóloga, continuar falando a faz seguir em frente. “Eu falo com todos os jornalistas, faço parte dessa Avabrum, vou às CPIs, às homenagens, porque o meu filho não tem mais jeito, mas, às vezes, a minha fala pode evitar que outra mãe venha a passar por isso”, reconforta-se. “Tenho muito trabalho, mas esse acidente, essa tragédia-crime ainda não acabou. A cidade está um caos. Tudo o que acontece desse crime é muito surreal. E a empresa ainda briga na justiça para falar que não foi crime, quando todo mundo sabe que foi”, desabafa Kenia.

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