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Quando a necessidade se sobrepõe aos sonhos 

Seja pela falta de oportunidades no mercado formal ou uma maneira de complementar a renda, milhares de mulheres têm recorrido aos pequenos negócios como meio de sustento financeiro

Publicado: 13 Março, 2025 - 10h06 | Última modificação: 14 Março, 2025 - 10h01

Escrito por: Redação | Editado por: Redação

Pesquisas mostram que as mulheres são as mais afetadas pela informalidade no mercado de trabalho. Entre os fatores que levam milhares de brasileiras a desenvolver o próprio negócio como meio de sobrevivência estão os baixos salários em todas as áreas e a sobrecarga.

Estima-se que mais de 10 milhões de brasileiras estejam à frente de algum negócio: elas correspondem a 46% dessas pessoas no Brasil, destaca o Global Entrepreneurship Monitor – principal estudo nesta área no mundo.

Pesquisa realizada pelo Consulado da Mulher, com apoio da Whirlpool, Engie e Vert.se, que busca saber as motivações e desafios desse público, entrevistou mais de 700 mulheres de 22 estados brasileiros. O relatório revela que, mesmo tendo um negócio, a baixa formalização, dificuldades financeiras e a sobrecarga em conciliar o trabalho e as tarefas domésticas acabam atrapalhando o desenvolvimento dessas profissionais.

"Embora mais da metade das mulheres entrevistadas na nossa pesquisa tenha afirmado receber ajuda de familiares ou do marido, quase metade continua dedicando cerca de 35 horas semanais aos cuidados do lar, quase a carga horária de uma jornada de trabalho CLT que, no Brasil, é de 44 horas semanais. É muito mais que a média das mulheres no país, de 21 horas semanais", menciona a diretora-executiva do Consulado da Mulher, Adriana Carvalho.

Especialmente entre as mulheres mais pobres, os deveres da maternidade são um empurrão para que elas optem pelo mercado de trabalho informal. Segundo constatou a Nota de Política Econômica (NPE 51), realizada pelo Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made) da Universidade de São Paulo (USP), o cuidado com os filhos ou com familiares dependentes já levou mais de dez milhões de mulheres a deixarem o trabalho formal.

De um total de 11,2 milhões de pessoas, 6,8 milhões eram mulheres negras e 4,3 milhões  brancas. Dado que também mostra o cenário de desigualdade.

Além da busca pelo melhor rendimento financeiro, para muitas delas, tocar o próprio negócio é uma alternativa de trabalho flexível para conciliar com as tarefas de cuidado parental.

Sem uma carteira assinada, trabalhadoras donas do próprio negócio não possuem acesso a benefícios que as amparem em momentos de necessidade, como licença maternidade, auxílio-doença e previdência social.

Perfil

De acordo com a Rede Mulher Empreendedora, as áreas da moda, artesanato, beleza e estética e alimentação fora de casa concentram mais de 70% das mulheres. A pesquisa do Consulado da Mulher também mostra a presença de atividades voltadas para a educação e profissionalização, sendo geridas por mulheres, apesar de estarem em menor número. 

Proprietária de um comércio há 14 anos, a artesã paraense Margarida Sousa Oliveira, 52, conta que seu primeiro contato com a possibilidade de trabalhar por conta própria foi após ter sofrido um acidente de trabalho. Afastada do serviço, foi convidada a participar de um movimento de mulheres, lugar onde descobriu seu talento com trabalhos manuais, artesanato, corte e costura, mas ainda sem pensar que poderia transformar isso em uma fonte de renda.

"Primeiro, comecei a trabalhar com alimentos, logo após ter me separado do meu marido. Fiquei com duas crianças pequenas para cuidar e aí, com o dinheiro do Bolsa Família, comprei farinha, ovos, bombons e comecei a vender. Depois, com o apoio do movimento social, comecei a vender tudo que produzia, como bonecas de pano, panos de prato, bijuterias, sandálias em pedrarias e outros", conta.

Embora 97% das mulheres entrevistadas pela pesquisa afirmem estar com os negócios ativos e gerarem renda, uma em cada quatro ainda se enxerga apenas como uma dona de negócio ou alguém que faz “bicos” para complementar a renda familiar.

Dificuldade financeira

O relatório ‘Elas empreendem: panorama empreendedorismo feminino no Brasil’, lançado em 2024, pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviço (MDIC), em parceria com outras organizações, evidencia que a dificuldade de acesso financeiro ocorre tanto para as mulheres em trabalhos informais que não possuem fonte de renda para garantir o seu sustento ou da família quanto para aquelas  orientadas para o crescimento com foco na inovação. 

Nos negócios de Margarida, o preconceito racial foi um dos obstáculos para a aceitação de seu produto. Entre suas produções, a artesã costura bonecas negras feitas de panos. 

"Precisei fazer palestras, gravar vídeos explicando o porquê de fazer bonecas pretas. Também me faltou apoio, principalmente da família, por conta do preconceito. Outra dificuldade foi a falta de estrutura financeira para confeccioná-las. A partir daí, comecei a reciclar retalhos das costureiras do meu bairro.”

Mulheres multitarefas

A mesma falta de tempo que as levam criar o próprio negócio permanece prejudicando o desenvolvimento dele. Por conta de atividades domésticas atribuídas à elas, o tempo de dedicação feminina aos seus negócios acaba sendo inferior ao dos homens, impactando negativamente o desempenho.  

“Hoje em dia, está mais tranquilo. Meus filhos são adultos, cada um com suas casas e responsabilidades. Só restaram eu e meu esposo, que também é uma pessoa idosa que trabalha informalmente. O nosso negócio é na nossa própria casa, aqui temos o meu ateliê e o espaço do mercado e nos revezamos para participar dos eventos e construir a nossa história de vida, cuidando dos nossos negócios", conta Margarida.

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - PNAD Contínua 2021, feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), constataram que donas de pequenos negócios dedicam, em média, 17% menos tempo em seus negócios do que homens.

O relatório do MDIC também reforça que "as mulheres acabam sendo mais afetadas pelo aumento do cansaço, estresse e tempo insuficiente para se dedicar ao negócio e a cursos de treinamento que oferecem ferramentas de gestão e conhecimento", diz.

"A vantagem é que eu não preciso sair de casa para trabalhar todos os dias e consigo conciliar as tarefas domésticas e o ateliê. Ainda tenho tempo para estudar e cultivar um quintal produtivo onde eu planto bananas, babosa, galinhas caipiras... O ruim é que às vezes não sobra tempo para alcançar mais coisas", completa a artesã.

Rede de apoio

Especialistas enfatizam o papel das redes de apoio às mulheres em prol da capacitação, promoção e gestão de negócios, bem como apoio socioemocional. A diretora-executiva do Consulado da Mulher, Adriana Carvalho, afirma que as redes são essenciais para que elas possam conquistar cada vez mais espaços no mercado.

"Conciliar as tarefas domésticas com os negócios próprios não é fácil e, para as mulheres, é ainda mais difícil. A missão do Consulado da Mulher é promover a inclusão produtiva e fortalecer mulheres para que elas conquistem suas independências financeira e emocional, gerando um efeito positivo em suas comunidades.

Adriana salienta ainda a importância do apoio dos familiares e pessoas de convivência, principalmente na partilha de tarefas do lar. 

Há 22 anos, o Consulado da Mulher presta suporte, atendendo mulheres em situação de vulnerabilidade econômica e social. De acordo com Adriana, as mulheres atendidas chegam com pelo menos seis meses de gestão do próprio negócio, e na grande maioria das vezes, na informalidade.

"Nós buscamos a inclusão e a construção de um ambiente onde todas as mulheres possam ser respeitadas e reconhecidas, e auxiliamos na jornada de empreendedorismo das mais diversas frentes. Atuamos com empreendedoras dos segmentos de alimentação, beleza e artesanato", explica.

Outra rede dedicada a ajudar mulheres líderes dos próprios negócios na superação das barreiras é o projeto Sebrae Delas. Segundo explica Georgia, a iniciativa oferece cursos, consultorias e materiais focados no desenvolvimento de competências técnicas, como planejamento, finanças e marketing, como nas socioemocionais, onde são trabalhadas a autoconfiança, negociação e rede de relacionamentos. 

"As redes de apoio têm papel fundamental no fortalecimento dos microempreendedores, oferecendo recursos e conexões que potencializam a gestão e o crescimento dos negócios. Um exemplo é o networking promovido por essas redes, que representa um aspecto vital para as empreendedoras. Ao conectá-las a outros profissionais, líderes empresariais e potenciais parceiros, elas ampliam as oportunidades de colaboração, acesso a mercados e compartilhamento de experiências. Essa interação constrói um ambiente de suporte mútuo, em que desafios são enfrentados coletivamente e soluções inovadoras emergem", afirma.

Em 2015, Margarida ajudou a fundar a Rede de Empreendedores Negros do Pará (REDE PRETA), que hoje colhe frutos valiosos na conquista de espaço para o comércio dos empreendedores. "Conseguimos avançar com a rede e agregar mais empreendedores. E tanto com a Rede Preta quanto com o Movimento Afrodescendente do Pará - Mocambo, participamos como entidades de apoio no Fórum Estadual de Economia Popular e Solidária", celebra.

"Com a organização da Rede Preta, facilitamos o diálogo com os órgãos, na perspectiva de conseguir apoio de espaço físico para comercialização dos nossos produtos, e com os bancos de microcrédito, para os empreendedores. Com certeza, ainda há muitos desafios pela frente, mas unidos a gente consegue se fortalecer", finaliza.



[BOX] O Desafio da Informalidade e da Precarização do Trabalho Feminino

O Boletim do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), divulgado em março de 2024, revela que apesar dos avanços, a informalidade continua sendo um dos principais desafios para as mulheres no mercado de trabalho. No 4º trimestre de 2023, a informalidade equivalia a 39,1% da população ocupada, abrangendo trabalhadores domésticos, por conta própria, assalariados sem carteira assinada e trabalhadores familiares.

A informalidade afeta de forma desproporcional as mulheres negras, que representam 41,0% das trabalhadoras informais, enquanto entre os homens negros essa proporção chega a 43,2%. Entre os não negros, as taxas são de 30,8% para mulheres e 32,5% para homens.

A precarização do trabalho feminino é evidenciada pelo alto número de mulheres em subocupação, com jornadas reduzidas, baixos rendimentos e sem acesso a direitos trabalhistas, composto majoritariamente por mulheres negras, sem qualquer proteção legal.

Outra realidade preocupante para elas é a invisibilidade social. Entre as quase 8,9 milhões de mulheres que atuam por conta própria, apenas uma parte possui acesso a benefícios e direitos garantidos pelo MEI (Microempreendedor Individual) e pelo Simples Nacional. A maioria enfrenta condições precárias de trabalho e renda, sem segurança jurídica, proteção social ou perspectiva de aposentadoria.